Uma das frases mais ouvidas em encontros e degustações com produtores de vinho é aquela que deixa claro que não há como fazer um vinho de alta gama sem ter uvas de grande qualidade. Portanto, é um consenso que os processos que antecedem a vinificação têm um impacto decisivo na qualidade do vinho.
E, dentro destes processos, um dos mais importantes é a colheita. Porém, não parece existir um consenso sobre o impacto do método utilizado sobre as características do vinho. De um lado, há quem defenda que a colheita manual é muito mais precisa e seletiva, com claras implicações sobre a qualidade do vinho. De outro, há quem afirme que esta escolha pouco influencia o produto final. Quem tem razão?
Colheita mecanizada
Se o processo de colheita manual é relativamente simples e não necessita de grande detalhamento, muita gente ainda tem dúvidas sobre como funciona a colheita mecanizada. Este método foi criado nos Estados Unidos na década de 1960, mas, por conta de pressões dos sindicatos de catadores de uvas, acabou não prosperando por algum tempo.
A possibilidade de mecanização da colheita de uvas, porém, chamou a atenção de John Possingham, um pesquisador na Austrália. Ele detectou o potencial futuro de tais dispositivos e enviou um colega para adquirir essas máquinas protótipos. E foi assim que a Austrália se tornou o primeiro grande mercado para colheitadeiras mecânicas.
Mas como funciona? As colheitadeiras mecânicas são grandes tratores que atravessam as fileiras de videiras e removem as uvas, vibrando suavemente as vinhas para que as uvas sejam separadas de seus cachos. Uma vez que as videiras tenham sido sacudidas, as uvas soltas são coletadas em placas que abrem e fecham ao redor do tronco da videira. Estas placas são posicionadas de forma a desviar as uvas para gôndolas, de onde são transportadas para um caminhão que geralmente acompanha as colheitadeiras, conforme pode ser visto no vídeo abaixo.
Vantagens e desvantagens
Não há dúvida de que as colheitadeiras mecânicas são capazes de baratear e agilizar o processo de colheita de uvas. Embora sejam caras (o custo na Europa varia entre € 100 mil e 200 mil por colheitadeira), os custos totais ficam entre 30% a 50% daqueles incorridos quando a colheita é manual. Estima-se que estas máquinas podem colher um hectare de vinhedo em não mais do que cinco horas, enquanto o trabalho manual, dependendo do número de catadores, pode levar entre um e dez dias. Além disso, as colheitadeiras podem funcionar 24 horas por dia, e, se necessário, escolher a noite (quando é mais frio) para colher, algo especialmente útil em regiões quentes.
Por outro lado, embora as colheitadeiras tenham evoluído muito nos últimos anos, é difícil comparar o cuidado que a colheita manual permite em relação à mecanizada. Em primeiro lugar, a colheita mecanizada, na ampla maioria das vezes, separa as uvas de seus cachos, o que acaba expondo as uvas de forma muito mais intensa ao oxigênio e outros elementos, o que pode afetar a qualidade das uvas usadas na produção do vinho.
Além disso, uma das vantagens da colheita manual é a capacidade dos catadores já fazerem uma seleção das uvas no próprio vinhedo. Colhendo as uvas de forma muito mais cuidadosa, eles deixam para trás uvas ou cachos que não estejam saudáveis (doenças, etc) ou nas condições ideais de maturidade (uvas muito verdes, já passadas ou atacadas por botrytis). Mesmo com os avanços recentes em seleção ótica, as colheitadeitas não tem este grau de precisão.
Fatores a serem levados em conta
A colheita manual também traz mais flexibilidade ao produtor. Como a colheita manual é feita com cachos inteiros, isso abre a possibilidade de ele vinificar suas uvas usando métodos distintos (uvas desengaçadas ou com cachos inteiros), ao contrário da colheita mecanizada, onde as uvas já são desengaçadas. Além disso, o fato das uvas terem mais contato com oxigênio acabam forçando a o produtor a usar métodos para evitar que a fermentação aconteça antes da hora ou contaminações, forçando maior uso de sulfitos. Este ponto é particularmente importante para os produtores de vinhos naturais ou de baixa intervenção.
Outra questão importante diz respeito ao peso significativo das colheitadeiras e seu impacto sobre a compactação dos solos dos vinhedos. Para muitos viticultores, o tráfego de maquinário pesado nos vinhedos pode compactar os solos e afetar a vida bacteriana, resultando em uvas menos saudáveis. Este é um dos motivos porque muitos viticultores usam arados puxados por cavalos em seus vinhedos.
Por fim, colheitadeiras têm limitações de uso. Por exemplo, não são recomendadas para alguns sistemas de condução de videiras, como latada (pérgolas) ou gobelet. Em alguns casos, o problema é o aclive dos vinhedos, já que o uso das máquinas se torna arriscado em vinhedos com grandes inclinações, como, por exemplo, aqueles encontrados no Mosel alemão, no Douro ou em muitas regiões da Itália, Áustria e mesmo na França, referidos como viticultura heroica.
Qual escolher?
Além das questões acima, há uma outra variável importante que deve ser levada em conta pelo produtor: qual variedade será colhida. Por exemplo, no caso de uvas de cascas finas, como a Pinot Noir, a diferença entre colheita manual e mecanizada é muito significativa, o que explica porque em regiões como a Côte d’Or, a colheita mecanizada seja quase inexistente. Já no caso de vinhedos plantados com uvas de cascas mais grossas, como Cabernet Sauvignon ou Merlot, o impacto da colheita mecanizada sobre a qualidade das uvas parece menor.
Um estudo recente elaborado por pesquisadores brasileiros mostra que o impacto da colheita mecanizada é praticamente nulo sobre a qualidade do vinho. Usando vinhedos de Merlot plantados na Campanha Gaúcha como amostra e mais de 100 parâmetros físico-químico dos vinhos produzidos, estes pesquisadores concluíram que a diferença entre colheita manual e mecanizada é muito pequena.
Por outro lado, há quem veja diferenças significativas. Para Fabien Moreau, enólogo e proprietário da Domaine Christian Moreau, em Chablis, a diferença entre colheita manual e mecanizada é enorme. Segundo ele “na colheita mecanizada não há como garantir o controle de qualidade das uvas. Mesmo separando folhas e brotos, no caso da colheita mecanizada as uvas chegam como uma “sopa”, com cerca 80% do suco já extraído. É necessário usar mais sulfitos e acelerar a prensagem para garantir a qualidade do vinho”. Vale lembrar que o debate sobre qual método de colheita é muito acalorado em Chablis, praticamente a única região da Borgonha onde há colheita mecânica em grande escala, geralmente para os vinhos mais simples.
Qualidade versus custo
Se do ponto de vista de qualidade parece haver uma percepção muito clara entre os produtores de que a colheita manual é superior, a questão talvez deva ser analisada dentro de uma ótica mais ampla. De um lado, é raro encontrar vinhos de alta gama onde os produtores deixem claro que a colheita é mecanizada, a escolha quase sempre acaba recaindo sobre a colheita manual.
Por outro lado, para vinhos mais baratos e mais simples, os benefícios da colheita mecanizada, sobretudo do ponto de vista de custos muito mais baixos, podem ser decisivos. Deste modo, o próprio consumidor pode fazer sua escolha. Na hora de escolher um vinho para momentos mais especiais, talvez os de colheita manual sejam os mais indicados. Já para o dia a dia, pensando na questão custo, a colheita mecanizada pode ser a melhor opção, até porque permite que os vinhos cheguem mais baratos à sua taça.
Fontes: The Wine Society; Wine Spectator; Wine Grape; Influence of manual and mechanical grape harvest on Merlot wine composition, Andrade Kaltbach et al; Wine Enthusiast
Imagem: Vindemia Winery via Unsplash
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