Enquanto na Borgonha existe um único sistema de classificação contemplando todos os vinhos produzidos na região, em Bordeaux o quadro é diferente. Algumas sub-regiões possuem suas classificações específicas que se aplicam exclusivamente aos vinhos produzidos em suas áreas. Já outras, como Pomerol, simplesmente não possuem nenhum critério para classificar seus vinhos.
O tema da coluna desse mês é uma das classificações dos vinhos do Medoc, Cru Bourgeois, que reúne vinhos mais acessíveis do que os caríssimos Cru Classés e que podem oferecem boas alternativas para quem busca degustar vinhos desse terroir tão especial.
As Classificações dos vinhos de Bordeaux
Inicialmente é importante diferenciar o conceito de classificação de apelação. Uma apelação (ou denominação) implica numa área geográfica delimitada, combinada com regras de produção específicas. Já uma classificação é um ranking, onde vinhos de uma, ou de uma, ou um conjunto de apelações, são “eleitos”. E, em alguns casos, não é o vinho que é classificado, mas sim o produtor. Teoricamente, com todas as ressalvas necessárias, a ideia de uma classificação é selecionar os melhores de uma área.
Há cinco classificações de vinhos na região de Bordeaux. São elas:
Classificação de 1855 – Grand Cru Classés – a mais famosa e celebrada de todas e inclui vinhos do Medoc, como os Châteaux Latour e Margot, assim como de Sauternes, como o Château d’Yquem
Saint-Émillion Grand Cru – Quando a classificação de 1855 foi feita, a região de Libournais não era organizada o suficiente para fazer parte da lista. Construída um século depois, em 1955, usou critérios diferentes da anterior. Alvo de inúmeras polêmicas, que incluem disputas judiciais, alguns dos principais produtores anunciaram recentemente o desinteresse em se manterem no sistema.
Classificação de Graves – Estabelecida em 1953, é a única classificação de Bordeaux que contempla vinhos brancos
Cru Bourgeois – classificação que iremos detalhar a seguir
Cru Artisan – É a mais recente de todas. Lançada no final do século passado, contempla pequenas propriedades e produtores, também conhecidos como “garagistas”.
Cru Bourgeois, uma longa história
O termo Cru Bourgeois é usado em Bordeaux desde o século XV. Bourgeois, ou “burgueses” era o termo utilizado para nomear os moradores dos Bourg (cidades). Excepcionalmente, e com o objetivo de combater os ingleses, a coroa francesa os autorizou a possuírem armas e comprarem terras a fim de consolidarem o domínio francês no território da Aquitânia, logo após a Guerra dos 100 anos entre França e Inglaterra. E junto com terra, vieram os vinhedos. Cru Bourgeois, portanto, eram vinhos produzidos por burgueses, num contexto em que as grandes vinícolas pertenciam à nobreza.
Em 1740 um documento oficial listou as principais propriedades que produziam vinhos no Medoc, em Bordeaux e seus proprietários. E pela primeira vez o termo Cru Bourgeois foi mencionado. No século XIX, era editado um livro com o sugestivo nome D’Armailac – Vinhos de Bordeaux. A edição de 1858 desse livro listou 248 propriedades, classificadas em três níveis: Bourgeois Supérieures, Bons Bourgeois e Bourgeois Ordinaires. Ainda não era uma lista oficial e formal, mas o termo já se fazia presente.
Em 1932, wine brokers e a Câmara de Comércio designaram 444 propriedades do Medoc, todas ao norte de Bordeaux, como Cru Bourgeois. Foi uma resposta à crescente insatisfação dos Châteaux não contemplados na classificação de 1855. Em 1962 foi criada a Sindicato dos produtores de Cru Bourgeois, que nesse período contava com cerca de 100 propriedades. Em 1979 a apelação foi oficialmente reconhecida pela Comunidade Europeia e no ano de 2000 coube a um órgão do governo francês definir as regras da classificação.
Em 2003 foi feita primeira classificação oficial. 490 propriedades se candidataram. 247 foram aprovadas. Foram mantidos os três níveis definidos em 1932 (Supérieures Excepcionelles, Supérieures e Cru Bourgeois). Porém, em 2007, após uma longa batalha judicial, o Cru Bourgeois foi banido de Bordeaux.
2009: nasce um “novo” Cru Bourgeois
Em 2009 um novo conceito de Cru Bourgeois foi criado como uma associação, com critérios rígidos de seleção, supervisionados por um órgão externo, o Bureau Veritas. Para fazer parte dessa associação, a vinícola é supervisionada e o vinho testado por terceiros. É necessário o atingimento de uma pontuação mínima para ganhar o selo de qualidade, que a partir de 2010 é representada por uma etiqueta no rótulo, para representar a garantia de qualidade e autenticidade. Foram selecionadas 243 propriedades.
A figura abaixo apresenta as áreas de produção dos Cru Bourgeois, todas elas localizadas ao norte de Bordeaux, no Haut-Medoc e Medoc, regiões vinícolas ao norte da cidade de Bordeaux.
Até 2018: classificação anual dos vinhos e uma grande confusão
No meio da regulamentação feita em 2009, foi aprovada uma avaliação anual dos vinhos. A cada dois anos, os produtores que cumprisse os requisitos mínimos para fazer parte da associação deveriam submeter seus vinhos da safra de dois anos atrás para avaliação. Assim, por exemplo, em 2015 era avaliada a safra 2013. Quem não passasse no teste perderia o status.
A figura acima ilustra a evolução do número de vinhos aprovados. Essa avaliação anual criou uma tremenda confusão na cabeça do consumidor. Afinal, um vinho pode perder o status de Cru Bourgeois de um ano para o outra. Para corrigir isso, uma nova alteração foi feita em 2018, que está em vigor. A partir de 2020, a classificação da safra de dois anos anteriores (portanto a de 2018) valerá até 2025, quando será novamente reavaliada.
E também em 2018 foi retomada a divisão em três antigas subclassificações, baseadas num ranking dos vinhos: Cru Bourgeois, Cru Bourgeois Supérieur e Cru Bourgeois Exceptionnel, que começaram a aparecer nos rótulos na safra de 2018 e valerão até 2025, quando haverá um novo ranking dos vinhos.
Complicado, mas vale a pena conhecer
Nenhuma classificação é perfeita. Muito menos a a classificação de 1855 do Medoc que elegeu os Gran Cru Classés. Certamente há uma área cinzenta em que os melhores Cru Borgeois poderiam competir com os, digamos, menos prestigiados, vinhos Cru Classés.
E num cenário de irracionalidade de preços dos vinhos de alta gama, especialmente quando impactado diretamente pelo consumidor chinês que valoriza excessivamente o termo Cru Classé impresso no rótulo, há sim oportunidades de degustar o fabuloso terroir do Medoc sem pagar um prêmio por uma marca. E como sempre vale a máxima de pesquisar a safra e o produtor.
Renato Nahas é Professor da ABS-Campinas. Concluiu a certificação de Bourgogne Master Level da WSG, é Formador homologado pelo Consejo Regulador de Jerez e Italian Wine Specialist – IWS, pela WSG. Sommelier formado pela ABS-SP, possui também as seguintes certificações: WSET3, FWE e CWS, este último pela Society Wine Educators.
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Foto da capa: Renato Nahas, arquivo pessoal
Imagens: Cru Bourgeois
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