Um estudo assinado por 89 pesquisadores de 23 instituições diferentes ao redor do mundo, publicado no início de março na revista Nature, reescreveu as origens do vinho. Ele traz uma visão alternativa, baseada em um enorme conjunto de análises de DNA de videiras, a respeito dos primeiros passos da vitivinicultura. Com isso, coloca em xeque a teoria mais aceita até então, a chamada Hipótese de Noé.
Esta hipótese afirma que a domesticação da Vitis vinifera, espécie da qual faz parte a imensa maioria das uvas atualmente usadas na elaboração de vinhos, foi centralizada na região do Cáucaso. Considerando os achados arqueológicos nas atuais áreas da Geórgia e Armênia, esta região do sudoeste da Ásia teria sido, cerca de 8.000 anos atrás, o berço da viticultura. Seria a partir desta área que as videiras ganhariam o mundo, chegando inicialmente ao Oriente Próximo e, posteriormente, à Europa.
Cronologia detalhada
A nova pesquisa, liderada pelo chinês Yang Dong, é um dos maiores estudos colaborativos sobre as origens do vinho jamais colocados em prática. A equipe utilizou um conjunto de 3.525 genomas de videiras, provenientes de 23 instituições em 16 países, para tentar entender a origem das uvas modernas. O foco foi identificar os centros de domesticação da espécie de uva selvagem Vitis sylvestris, além da disseminação da resultante Vitis vinifera.
O resultado foi surpreendente. Analisando um conjunto inicial de 2.503 genomas de variedades da Vitis vinifera e de 1.022 ainda existentes da Vitis sylvestris, os pesquisadores reconstruíram a cronologia completa destas espécies. O processo de evolução, porém, foi longo. Inicialmente, entre 400.000 e 200.000 anos atrás, as vinhas selvagens de Vitis sylvestris teriam sido divididas em duas populações distintas na Eurásia. De um lado, aquelas da Europa, de outro, as da Ásia.
As videiras selvagens da Ásia, porém, sofreram nova divisão. As causas foram eventos climáticos e o maior isolamento geográfico resultante, possivelmente cerca de 56.000 anos atrás. Um grupo estaria centralizado na região do Oriente Próximo ou Levante (atuais áreas de Israel, Líbano, Jordânia e Palestina) e outro no Cáucaso (onde hoje ficam atualmente Georgia, Armenia e Azerbaijão).
Duas origens
Esta divisão teria dado origem a dois centros de domesticação distintos. Evidências mostram que as melhores condições climáticas após o final da era glacial permitiram o avanço da domesticação de espécies e avanços na agricultura. Assim, há cerca de 11.000 anos, nascia simultaneamente, em dois centros distintos a aproximadamente 1.000 km de distância entre eles, a Vitis vinifera. O homem passava a cultivar videiras, principalmente com o intuito de prover uma fonte estável de alimento.
A hipótese mais provável indica que a utilização de uvas para a elaboração de vinhos tenha ocorrido inicialmente na área do Cáucaso. Há evidências de vinificação datadas de mais de 8.000 anos. Porém, foi a partir do outro núcleo, o do Oriente Próximo, que as videiras rapidamente se espalhariam para outras regiões, até chegar à Europa.
A expansão para a Europa
As videiras domesticadas no Oriente Próximo chegaram à Europa após passarem pela Anatólia. Nesta região, no leste da atual Turquia, foram identificadas importantes evidências. Foram encontradas amostras, datadas entre 6.500 e 5.500 a.C, de fermentados mistos no sítio arqueológico de Çatal Höyük, próximo das montanhas Taurus.
O estudo dividiu as videiras desta jornada em direção à Europa em quatro grupos distintos. As uvas da família Moscatel teriam surgido há 10.500 anos, seguidas pelas uvas para vinho dos Balcãs (8.070 anos), uvas para vinho ibéricas (7.740 anos) e uvas para vinho da Europa Ocidental (6.910 anos). Esta progressão cronológica coincide com a migração dos agricultores da Anatólia para a Europa, substanciando o papel da viticultura na formação das sociedades agrícolas neolíticas.
Nesta trajetória em direção a Europa, as videiras originárias do Oriente Próximo e Anatólia teriam realizado introgressão (cruzamento) com espécies já existentes nas várias regiões europeias, derivadas da divisão da Vitis sylvestris ocorrida cerca de 400.000 a 200.000 anos antes. Isso teria dado origem às variedades atuais encontradas no Velho Continente, com perfil genético que reflete os cruzamentos entre as espécies selvagens locais e a Vitis vinifera.
Outros destinos
Mas a Europa não foi o único destino das videiras domesticadas no Levante. Foram três outras direções distintas, abrangendo a Eurásia e o norte da África. Primeiro, houve uma expansão para o leste através da Ásia Central, com destino à Índia e China. A rota seguiu o corredor de montanhas da Ásia interior. Este caminho também testemunhou a expansão de outras culturas (como trigo e cevada) do Ocidente para Oriente.
Em segundo lugar, a expansão para o norte espelhou o contato cultural inicial da Ásia Ocidental com o Cáucaso. Finalmente, além daquela para a Europa através dos Balcãs, houve uma expansão alternativa para o oeste. Ela ocorreu através da costa do norte da África, para chegar até o Marrocos .
E as uvas do Cáucaso?
Se as videiras do Oriente Próximo atingiram diversas regiões da Europa, o mesmo não ocorreu com aquelas provenientes do centro de domesticação do Cáucaso. Elas ficaram confinadas a ambos os lados das montanhas da região, com uma dispersão limitada na bacia dos Cárpatos, através do norte do Mar Negro.
Isso ajuda a explicar por que existem diferenças genéticas significativas entre as uvas atualmente cultivadas na Geórgia, Armênia ou Azerbaijão em relação às variedades europeias, que posteriormente conquistaram o mundo. Análises genéticas realizadas pelos pesquisadores confirmaram que as atuais variedades da Vitis vinifera na Europa contêm uma ascendência que os liga à Vitis sylvestris da região do Oriente Próximo, não às do Cáucaso.
Quebrando paradigmas
O estudo parece ser um marco fundamental para entender as origens da viticultura e de como ela se espalhou na Antiguidade. Os dados apoiam firmemente a hipótese de duas origens paralelas para a Vitis vinifera. Isso permite rejeitar a teoria até então mais aceita, de que existiria de um único centro primário de domesticação.
Além disso, estes resultados contrastam com modelos anteriores. Eles implicavam que as videiras da área do Cáucaso teriam desempenhado um papel central na formação da viticultura na Europa. Neste caso, ficou evidente que esta região representou um esforço de domesticação local, com impacto bastante limitado na diversificação das videiras ao redor da Eurásia.
Por fim, o estudo ajuda a decifrar o enigma em relação às evidências de presença de videiras na Europa, antes mesmo da migração da Vitis vinifera a partir do Levante. Apesar de serem da mesma espécie (ao menos antes da domesticação), as videiras selvagens da Europa (e que posteriormente cruzaram com a Vitis vinifera) já estavam presentes antes mesmo da presença humana na região.
Fonte e diagrama: Dual domestications and origin of traits in grapevine evolution, Yang Dong et al
Imagem: EstudioWebDoce via Pixabay
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