Um tesouro ainda pouco explorado. O Massif Central corresponde a quase 15% do território da França, ganhando fama pelas suas belezas naturais. É uma das áreas menos densamente povoadas do país e é ocupada principalmente por florestas, concentrando cerca de 450 vulcões extintos, a maior quantidade deste tipo de formação geológica do planeta.
Para quem aprecia vinhos, a região é muito conhecida pelas suas vastas florestas de carvalho, origem de grande parte da madeira usada para o envelhecimento de tintos ou brancos franceses. O que pouca gente sabe é que nesta área também existem regiões com longa tradição na produção de vinhos. E uma delas, possivelmente a mais dinâmica atualmente, é a Côtes d’Auvergne.
Localização geográfica e terroir
A área de vinhedos da Côte d’Auvergne se distribui em uma faixa de 80 quilômetros na orientação norte a sul e 15 quilômetros de leste a oeste, tendo Clermont-Ferrand ao centro. Esta cidade, com forte vocação universitária, fica a cerca de 420 quilômetros a sudeste de Paris e 160 quilômetros a oeste de Lyon. Esta área é cortada pelo paralelo 45, o que a coloca na mesma latitude de áreas vinícolas importantes, como Saint-Emilion (Bordeaux), Côte Rotie (Rhône), Piemonte (Itália) e Willamette Valley (Estados Unidos).
É uma região de clima continental, com seus vinhedos espalhados em encostas com altitude entre 350 e 550 metros. A área tem uma excelente proteção natural contra os ventos, por conta da presença da cadeia de vulcões Châine des Puys, a oeste, e do parque natural Livradois-Forez, a leste. Apesar da origem vulcânica, os solos são bastante diversificados (basalto, granito, calcário e diversos tipos de argilas). Por conta da alta fertilidade, é uma área com longo histórico na agricultura, inclusive no plantio de uvas.
Longa tradição
Como em boa parte do centro da França, acredita-se que os romanos sejam os responsáveis pela introdução da vinicultura na região de Puy-de-Dôme. Os primeiros registros, porém, datam do século V, com os relatos de Sidoine Apollinaire, então bispo de Clermont. Contando com o impulso da nobreza e do clero, a vinicultura cresceu ao longo da Idade Média, com foco tanto em qualidade como quantidade.
Os vinhos eram famosos em todo o país, e faziam enorme sucesso nas cortes de Henrique IV (1553 – 1610) e Luís XIV (1638 – 1715), também conhecido como o “Rei Sol”. Em paralelo, a área plantada cresceu, atingindo cerca de 21.000 hectares em 1789. Ao contrário de outras regiões (como a Borgonha, por exemplo), a Revolução Francesa teve um impacto positivo na região.
Ela permitiu que um grande número de camponeses acessasse a propriedade e cultivasse videiras. Com isso, entre 1789 a 1804, o número de propriedades quadruplicou, permitindo que área plantada no departamento de Puy-de-Dôme atingisse 34.000 hectares em 1850.
Pico de produção
A expansão prosseguiu nas décadas seguintes, impulsionada pelo cultivo da Gamay, uma variedade mais produtiva. Inicialmente, a chegada da filoxera à França, na década de 1860, foi positiva para a região de Auvergne. Ainda não afetada pela epidemia, ela passou a suprir os principais mercados franceses, aproveitando-se da rede de logística criada com a chegada das ferrovias e a expansão das hidrovias.
A área dos vinhedos atingiu 43.500 hectares em 1895, o que colocava o departamento de Puy-de-Dôme como a terceira área com mais vinhedos na França. Somente os departamentos de Hérault (que inclui o Languedoc) e Aude (Roussignon) produziam mais. Porém, este quadro rapidamente se reverteu.
Abandono e recuperação
A chegada da filoxera à região, em 1890, mudou radicalmente esta situação. Grande parte da área de vinhedos foi abandonada e os primeiros sinais de recuperação vieram somente no final da década de 1920. A união para a defesa dos vinhos de Châteaugay foi fundada em 1929, ampliando seu escopo para incluir todos os vinhos de Auvergne em 1932.
Nesse mesmo ano, uma decisão judicial concedeu o uso do termo Vins d’Auvergne aos vinhos elaborados a partir das castas Gamay, Pinot Noir e Chardonnay produzidos no território de 171 comunnes do departamento de Puy-de-Dôme. Cooperativas surgiram a seguir e maiores esforços em manter a qualidade ganharam força em 1948, com a união entre os produtores. O passo seguinte foi o reconhecimento formal de cinco áreas específicas: Boudes, Chanturgue, Châteaugay, Corent e Madargue.
O reconhecimento da denominação Vin Délimitée de Qualité Supérieure (VDQS) Côtes d’Auvergne ocorreu em maio de 1951. Porém, a denominações de origem recebeu aprovação somente em 2010, com os primeiros vinhos parte da denominação sendo aqueles da safra 2011.
Denominação de origem e IGP
A área da denominação Côtes d’Auvergne conta com cerca de 3.465 hectares, dos quais 350 hectares plantados com videiras (246 hectares como parte da denominação de origem Côtes d’Auvergne e 104 hectares de vinhedos da IGP Puy-de-Dôme). Da superfície plantada, distribuída por 53 communes, cerca de 81% são dedicados a uvas tintas (Gamay e Pinot Noir) e os restantes 19% ocupados pela Chardonnay.
A produção total em 2020 foi de 11.831 hectolitros, que equivale a cerca de 1,6 milhão de garrafas. Deste total, dois terços foram vinhos tintos, com o restante dividido quase igualmente entre brancos e rosés. São 29 produtores independentes e uma cooperativa (Desprat Saint-Verny, com 56 afiliados) elaborando vinhos na área.
As regras da denominação de origem Côtes d’Auvergne permitem o uso apenas de três uvas: a Chardonnay e a Gamay como variedades principais e a Pinot Noir com secundária. Como as uvas primárias devem ter pelo menos 50% do total, na prática os brancos são monovarietais de Chardonnay e os tintos e rosés contam com ao menos 50% de Gamay. Já a IGP Puy-de-Dôme tem muito mais flexibilidade, incluindo monovarietais ou cortes onde a Pinot Noir é a uva dominante.
Cinco indicações geográficas complementares
Dentre os vinhos produzidos dentro da denominação de origem Côtes d’Auvergne, cerca de um terço deles têm o direito de incluir uma menção geográfica complementar nos seus rótulos. Isso ocorre, pois, suas uvas são provenientes de uma das cinco áreas específicas da região, comparados aos Crus de Beaujolais: Boudes, Chanturgue, Châteaugay, Corent e Madargue.
Côtes d’Auvergne Madargue se situa na porção norte da denominação de origem, com cerca de 35 hectares de área demarcada, em torno do vilarejo de Riom. É a menor das cinco, com vinhos tintos a partir de solos argilo-calcários. Já Côtes d’Auvergne Châteaugay, logo ao sul de Madargue, é a maior delas. São 175 hectares de área, com solos predominantemente basálticos, também com foco exclusivo em vinhos tintos.
No centro, em torno de Clermont-Fermant, fica Côtes d’Auvergne Chanturgue, com 75 hectares de área delimitada. Esta área, que no passado gozava de enorme reputação por seus vinhos, está hoje restrita a poucos vinhedos, com foco em vinhos tintos e subsolo de basalto coberto por argila e calcário. Côtes d’Auvergne Corent é a única delas próxima ao rio Allier, com apenas 20 hecatres plantados e produção restrita a vinhos rosés. Por fim, Côtes d’Auvergne Boudes, mais ao sul, conta com 30 hectares de vinhedos, em solos argilosos.
Vinhos e produtores
Os vinhos elaborados a partir da Gamay (seja monovarietal ou como uva majoritária) são os mais comuns na região. Porém, suas características variam bastante. As diferenças no terroir (sobretudo o perfil de solos) são significativas, o que garante vinhos mais finos e elegantes em áreas como Chanturgue e Châteaugay. Por outro lado, os ricos solos argilosos de Boudes dão origem a alguns dos Gamay mais encorpados da região.
Gradualmente a participação dos vinhos com maior presença de Pinot Noir (inclusive monovarietais) vem crescendo. Um exemplo é a Desprat Saint-Verny, cooperativa local e, de longe, o maior produtor da região. Com cerca de 170 hectares de vinhedos, a área plantada de Pinot Noir (59 hectares) já se aproxima da Gamay (77 hectares). No entanto, por conta das regras da denominação de origem, vinhos mais de 50% de Pinot Noir são engarrafados como IGP Puy-de-Dôme.
Além da Desprat Saint-Verny, alguns produtores independentes também se destacam, sobretudo pela qualidade de seus vinhos, geralmente elaborados com uvas de uma das cinco indicações geográficas. Entre eles, destaque para Benoît Montel, Vincent Marie, Vincent Tricot e Jean Maupertuis.
Fontes: Loire Master Level Study Manual, Wine Scholar Guild; The Wine Doctor; Cahier des Charges de L’appellation d’origine Côtes d’Auvergne; Loire Valley Wine Economic Report, AOC Côtes d’Auvergne
Mapa: AOC Côtes d’Auvergne
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