Derrocada de grande produtor dos EUA sinaliza o futuro do mundo do vinho

Duas tendências marcam o mundo do vinho atualmente. De um lado, os vinhos mais exclusivos se tornam cada dia mais caros, resultado da percepção, por muita gente, de que são um símbolo de status. Grand Crus da Borgonha, cuvées exclusivas de Champagne, vinhos raros do Napa Valley e alguns dos Premier Cru Classé de Bordeaux estão sendo negociados na casa de milhares de dólares a garrafa. E esta tendência não parece perder força, sobretudo em um mundo onde a concentração de renda não para de crescer.

A segunda tendência diz respeito ao consumo de vinho. Analisando do ponto de vista de quantidade, o que se vê é uma longa e quase ininterrupta tendência de queda do consumo per capita nos principais países produtores. E, pior, isso deve prosseguir nos próximos anos. Há estudos mostrando que o consumo de vinho na França pode encolher até 26% até 2034. Esta queda nos países europeus tem sido compensada pelo maior consumo em outros mercados, porém isso também parece estar mudando.

Um conto americano

Ste. Michele é considerado o terceiro maior produtor de vinhos nos Estados Unidos, respondendo por uma grande parcela da produção de vinhos no Noroeste do país, mais especificamente nos estados de Washington e Oregon. Controla cerca de 12 mil hectares de vinhedos (incluindo vinhas próprias e de terceiros) nestes dois estados e é, de longe, o maior produtor da região. Para colocar em perspectiva, a soma de todos os vinhedos da Côte d’Or, na Borgonha, é de 8 mil hectares.

Este gigante do vinho ganhou destaque em 2021, quando foi negociada pela Altria, conglomerado com atividade principal na indústria de tabaco (dona de marcas como Marlboro, Benson & Hedges e Parliament). O comprador foi o fundo de private equity Sycamore Partners, que pagou US$ 1,2 bilhão pela Ste. Michele.

Um novo capítulo

Transações envolvendo troca de controle em vinícolas são relativamente comuns, mas poucas vezes se viu um impacto tão intenso de uma delas. Com “apenas” 1.000 hectares de vinhedos próprios, a Ste. Michele funciona muito mais como um négociant, comprando uvas de terceiros para elaborar seus vinhos. Com isso, o seu papel no setor vitivinícola do Noroeste dos Estados Unidos é amplificado. Centenas de viticultores dependem dela para vender suas uvas.

Em uma decisão motivada por “queda nas margens de lucro”, a Ste. Michele anunciou que não irá comprar 40% das uvas pré-contratadas em Washington na safra 2023. A poucas semanas do início da safra, a decisão inesperada da empresa criou pânico na região, lembrando que Ste. Michele responde por cerca de 50% da produção de vinhos neste estado norte-americano.

Mas quais seriam os fatores por trás da tal queda de rentabilidade?  Os vinhos mais baratos (e de maior volume produzido) da Ste. Michelle sofrem cada dia mais com a forte concorrência de outras bebidas, como cervejas artesanais, destilados, hard seltzers e coquetéis prontos para beber. Também sofre pressão de preços de vinhos importados da Europa.

Os extremos do vinho

Esta aparente dicotomia de maior procura (e preços mais altos) por vinhos mais exclusivos e queda na demanda por vinhos mais baratos não ocorre somente nos Estados Unidos. Na Europa, talvez a região que melhor simbolize esta tendência é Bordeaux. De um lado, seus Premier Clu Classé batem recordes de valorização em leilões. De outro, os aumento de custos e queda na procura por vinhos baratos levaram as autoridades a colocar em prática uma agressiva estratégia de extração de milhares de hectares de videiras.

Este fenômeno não se restringe somente à França. Produtores europeus fora das áreas mais valorizadas buscam soluções para o mesmo problema. Existe um excesso de produção de vinhos mais baratos, que não encontram contrapartida de consumo. A cada dia as pessoas bebem menos vinho, tanto por uma questão geracional (o vinho parece não ganhar muito espaço entre os jovens) como pela busca de hábitos de vida mais saudáveis, com redução no consumo de bebidas alcóolicas.

Perspectivas

Este quadro parece de difícil solução. Quem está acostumado a beber vinhos, tendo condições financeiras para tal, acaba buscando opções de maior preço. Caso não as tenha, opta por menor consumo e/ou busca de bebidas alcóolicas alternativas. A decisão de um produtor como Ste. Michele mostra o outro lado da moeda, de como os produtores de vinhos de grande escala irão reagir a isso. Neste caso, a decisão tem um peso ainda maior sobre os viticultores de menor porte, tornando o quadro ainda mais dramático.

Assim, o pequeno viticultor, esteja ele localizado no estado de Washington ou nas denominações de origem menos badaladas de Bordeaux, irá arcar com as consequências. Enquanto isso, os melhores produtores do Napa Valley ou do Médoc assistem a uma disparada de preço nos seus vinhos. Ao menos em termos de volume produzido, menos parece ser mais. Esta talvez seja a mensagem mais clara para entender melhor o futuro do mundo do vinho.

Como eu me descrevo? Sou um amante exigente (pode chamar de chato mesmo) de vinhos, um autodidata que segue na eterna busca de vinhos que consigam exprimir, com qualidade, artesanalidade, criatividade e autenticidade, e que fujam dos modismos e das definições vazias. A recompensa é que eles existem, basta procurar!

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Foto: Alessandro Tommasi, arquivo pessoal

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