Se os vinhos de baixa intervenção têm ganhado espaço crescente nos últimos anos, a contrapartida vem na menção mais frequente de termos ou técnicas associados a estes vinhos. E um dos mais comuns se refere ao uso de fermentação natural, também chamada de fermentação com uso de leveduras nativas ou indígenas. Você sabe exatamente o que isso significa? Qual seria a diferença entre esta prática e a convencionalmente usada em vinhos mais comerciais?
Antes de mais nada, é fundamental entender qual o papel das leveduras na elaboração de um vinho. São estes fungos unicelulares os responsáveis pelo processo de fermentação, onde o açúcar que existe nas uvas é transformado em álcool e gás carbônico, além de outros sub-produtos. Sem fermentação, não há vinho e, portanto, o papel das leveduras é fundamental.
Indígenas versus inoculadas
A fermentação pode ser realizada por diversas leveduras, mas uma delas ganha atenção especial: a Saccharomyces cerevisiae. Ela é uma das poucas que tem a capacidade de transformar todo o açúcar existente nas uvas em álcool, pois ao contrário de quase todas as demais, tem a capacidade de suportar teores de álcool acima de 15%. Ela é, portanto, mais eficiente e objeto de desejo de muitos enólogos.
Por conta destas características, a Saccharomyces cerevisiae se transformou em um insumo enológico muito usado. Da mesma forma que podemos ir a um supermercado comprar fermento para fazer um bolo, um enólogo pode adquirir estas leveduras e inseri-las no mosto do vinho. Por conta deste procedimento, estas leveduras são chamadas de leveduras inoculadas. Além de permitir uma fermentação eficaz, as leveduras inoculadas podem ser escolhidas de acordo com as características específicas que o enólogo deseja trazer ao vinho.
Porém, a fermentação pode tomar outro caminho. A princípio, não seria necessário inocular leveduras, já que elas existem na natureza. E esta é uma das propostas dos vinhos de baixa intervenção: elaborar vinho nos quais a fermentação seja natural, sem uso de insumos enológicos. Neste caso, a fermentação ocorre por conta da ação de leveduras já existentes nos vinhedos, cercanias ou na adega onde o vinho é elaborado.
Definindo leveduras indígenas
Não existe uma definição única para leveduras indígenas. Em linha com a alternativa mencionada acima, pode se referir às leveduras que não foram intencionalmente inoculadas para a elaboração do vinho. Elas estariam presentes no momento no qual o vinho é feito, e não se restringem somente à espécie Saccharomyces cerevisiae. Existe uma grande quantidade de outras leveduras e o conjunto de todas estas leveduras não inoculadas, incluindo a cerevisiae, seria chamado de leveduras indígenas, selvagens ou nativas.
Existe também uma segunda definição, que excluiria a Saccharomyces cerevisiae. Assim, somente outras espécies de leveduras poderiam ser chamadas de indígenas, como aquelas dos gêneros Kloeckera, Candida e Pichia, sendo a Kloeckera apiculata a mais comum. Esta definição, porém, tem perdido espaço, até pela importância que a Saccharomyces cerevisiae tem no processo de vinificação.
Onde e como
As leveduras indígenas estão presentes no ambiente de elaboração dos vinhos, incluindo nos equipamentos de colheita, na superfície dos equipamentos usados na vinificação (tanques, por exemplo). Mas também tem presença nos vinhedos e arredores, embora isso não seja o caso para todas as espécies. Algumas espécies estão presentes também nas cascas das uvas, embora não seja o caso da Saccharomyces cerevisiae.
Mas como funciona a fermentação natural? Ela ocorre com diferentes espécies de leveduras agindo em sequência. No início do processo, leveduras apiculadas (que inclui aquelas não-Saccharomyces, como as dos gêneros Hanseniaspora e Kloeckera) são as mais abundantes. Porém, como elas tem menor resistência ao álcool gerado pela fermentação, após alguns dias elas morrem e são substituídas pela Saccharomyces cerevisiae.
Fermentação controlada em vantagem?
Além de menos eficientes na fermentação e de menor resistência ao álcool, algumas leveduras apiculadas também podem trazer características consideradas desagradáveis ao vinho. Um exemplo é a Brettanomyces, também um fungo unicelular, cuja presença em excesso no vinho é apontada como um defeito de vinificação.
Por conta destes e outros fatores, muitos enólogos optam pela solução mais segura e eficiente: inocular leveduras e deixar que elas assumam a integridade do processo. Com isso, esperam que culturas inoculadas de Saccharomyces suprimam tanto as espécies indígenas não-Saccharomyces como também as cepas de Saccharomyces já existentes, para dominar a fermentação. A fermentação, com isso, passa a ser controlada e sujeita a poucas surpresas.
O contra-ataque das leveduras indígenas
Porém, estudos mais recentes mostraram que a presença de outras leveduras no processo pode trazer benefícios à qualidade dos vinhos. Isso, porém, tem um custo. No caso da fermentação natural, o impacto dos diferentes tipos de leveduras no aroma e sabor do vinho pode não ser consistente, pois a fermentação natural é um processo menos controlado. Assim, coloca-se uma variável extra, além da safra e outras técnicas de vinificação: não há garantia de uma fermentação uniforme ao longo dos anos.
Se o risco aumenta, a qualidade também parece mudar de patamar. Estudos mostraram que a supressão total de espécies indígenas não-Saccharomyces pode reduzir a complexidade dos vinhos. Segundo estas pesquisas, inocular uma cepa de cerevisiae selecionada pode não só resultar na inibição de leveduras com potencial de deterioração do vinho. Estas práticas também eliminariam outras espécies de leveduras, cuja presença no processo de fermentação, em quantidades corretas, pode contribuir positivamente para a qualidade do vinho.
Tipicidade versus padronização
Além do dilema referente a risco versus qualidade, o uso ou não de leveduras indígenas também desperta uma outra controvérsia. Estudos mostraram que “a biogeografia microbiana associada à uva está associada a fatores regionais, varietais e climáticos em zonas viticulturais”. Ou seja, há evidências da existência de um “terroir microbiano”, que também atuaria como fator determinante na variação regional entre uvas de acordo com sua região de origem.
Isso, segundo pesquisadores, representa uma mudança de paradigma na compreensão dos sistemas alimentares e agrícolas, que afeta a produção de uvas e vinhos. Neste caso, a padronização de comunidades microbianas associadas a produtos agrícolas ou práticas como inoculação de leveduras pode associar-se às características específicas de qualidade dos vinhos. Em poucas palavras, leveduras indígenas contribuem também para maior tipicidade dos vinhos.
Lidando com as incertezas
Vinhos elaborados com leveduras indígenas podem mostrar maior tipicidade e qualidade. Uma das conclusões de um estudo publicado em 2014 parece deixar isso claro. “O impacto da microbiota de uva é muitas vezes benéfico. A participação da microbiota indígena nas fermentações de vinho é frequentemente considerada fundamental para aumentar a complexidade sensorial dos vinhos”.
Por outro lado, existe mais um elemento de incerteza envolvido no processo, como mencionado anteriormente. Porém, já existem diversos produtores que investiram na criação e manutenção de cepas de leveduras que consigam, simultaneamente, manter qualidade e tipicidade sem que para isso seja necessário correr grandes riscos no processo de vinificação.
Estes produtores, dentre eles alguns grandes château do Bordeaux, consideram as leveduras como uma espécie de patrimônio não tangível único, algo que faz parte do seu terroir. A aposta agora é que mais produtores consigam colocar fim ao dilema e produzir vinhos autênticos e de qualidade, sem correr grandes riscos ou perder tipicidade.
Fontes: Microbial biogeography of wine grapes is conditioned by cultivar, vintage, and climate; Microbial biogeography of wine grapes is conditioned by cultivar, vintage, and climate; Controlled mixed culture fermentation: a new perspective on the use of non-Saccharomyces yeasts in winemaking;
Imagem: Brigitte makes custom works from your photos, thanks a lot via Pixabay
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