O Vale do Loire talvez seja a região vinícola mais heterogênea da França. Se na Borgonha e no Bordeaux existem muitas características intrarregionais comuns (solos, variedades de uvas, condições climáticas), isso não ocorre no Loire. São solos distintos, uma enorme diversidade de uvas, além de climas e relevos muito diferentes entre as diversas áreas com vinhedos às margens do maior rio da França.
Porém, quando são consideradas as sub-regiões do Loire, dentro delas existe muito mais homogeneidade. Uma destas sub-regiões é o Pays Nantais, conhecido sobretudo pelos seus vinhos brancos, boa parte dos quais elaborados a partir da uva Melon de Bourgogne. E quando se fala desta variedade, curiosamente originária da Borgonha e não do Vale do Loire, logo vem à mente uma denominação de origem: Muscadet Sèvre et Maine.
Uma região especial
A denominação de origem Muscadet Sèvre et Maine certamente é a mais conhecida, mas não a única no Pays Nantais, onde a Melon de Bourgogne reina. Na verdade, existem quatro denominações de origem Muscadet, das quais a Muscadet Sèvre et Maine é uma delas. Considerada com uma denominação regional, a Muscadet AOC forma a base da pirâmide entre elas, conforme mostra a figura abaixo.
Dentro de sua área territorial, existem três denominações de origem sub-regionais: Muscadet Coteaux de la Loire AOC, Muscadet Côtes de Grandlieu AOC, além da já citada Muscadet Sèvre et Maine AOC. O topo da pirâmide corresponde às áreas de vinhedos mais homogêneos e de melhor qualidade, os Cru Communaux. Ainda não classificados como denominações de origem distintas, todos eles ficam dentro da Muscadet Sèvre et Maine AOC.
Domínio regional
Apesar de ser uma denominação sub-regional, Muscadet Sèvre et Maine AOC é de longe a maior entre as quatro. Como 5.500 hectares de vinhedos, responde por cerca de 75% de toda a produção de vinhos do Muscadet, deixando apenas os 25% restantes para a somatória das três demais. Criada em 1936, é também a mais antiga entre as quatro.
Esta denominação de origem fica inteiramente dentro da área geográfica da Muscadet AOC, mais especificamente a leste e sudeste da cidade de Nantes. No total, são 23 vilarejos distintos, divididos entre os départments de Maine-et-Loire e Loire Atlantique. Seu nome deriva de dois rios da região, o Sèvre Nantais e o Maine, ambos afluentes do Loire.
Longa história
Se atualmente a Melon de Bourgogne domina esta região, sendo a única uva aceita nesta denominação de origem, o passado foi muito diferente. As primeiras menções de viticultura na região remontam ao tempo dos romanos, sobretudo na época entre 250 e 400 depois de Cristo, quando um ciclo de temperaturas mais elevadas facilitou o cultivo de uvas. Não, há, porém, registro de quais uvas seriam cultivadas.
Assim como em outras regiões da França, a presença de ordens religiosas na região impulsionou a produção de vinhos também no Pays Nantais, a partir da Idade Média. Deve-se aos monges a introdução de diversas variedades na região, tal como Colombard e Melon de Bourgogne (já com menções em 1635). Nesta época, o porto de Nantes era uma base importante de comércio, o que incentivou o crescimento da área de vinhedos. E os holandeses tiveram um papel central neste contexto.
Ascensão e queda
Enquanto regiões no Loire central eram incentivadas a produzir vinhos doces de alta qualidade, a região do Pays Nantais adotou uma estratégia diferente. Por conta da proximidade do mar e menores barreiras alfandegárias, a região se dedicou de forma mais intensa ao cultivo de variedades de alta produtividade. O objetivo era a produção de grandes quantidades de vinho base, usados na produção de destilados para suprir o mercado holandês.
Os vinhedos de Folle Blanche ganharam destaque e Nantes passou a ser o segundo maior porto em termos de comércio de vinho na França no século XVII, somente atrás de Bordeaux. Mas isso viria a mudar, por conta de dois fatores principais. O inverno de 1708 foi extremamente frio (o mais severo em 500 anos), praticamente dizimando os vinhedos da região. Além disso, a centralização do poder na França tirou a autonomia local, e as exportações caíram de forma acentuada. A pá de cal foi a chegada da filoxera na região, entre 1875 e 1884.
Um novo ciclo
Após a filoxera, alguns vinhedos da região foram replantados, sobretudo, com a Melon de Bourgogne (por conta de sua melhor resistência ao frio) e Folle Blanche. Porém, por conta do pequeno tamanho médio das propriedades, policultura e baixa disponibilidade de capital dos produtores, a retomada foi lenta. A criação da denominação de origem em 1936 ajudou, mas o grande boom viria somente na década de 1980.
Atendendo à crescente demanda por vinhos frescos, tanto a área plantada como a produtividade cresceram de forma acelerada nesta década. O resultado foi uma explosão da produção, centralizada e comercializada por négociants, que dominavam 80% do fluxo de negócios. Porém, novamente as condições climáticas mudariam este quadro. Uma geada na primavera de 1991 resultou em uma queda de 90% na produção, com os preços subindo cerca de 50%. As condições que se seguiram deram um incentivo à produção e engarrafamento pelos próprios viticultores, iniciando uma nova era no Pays Nantais.
O foco de muitos produtores passou para vinhos de maior qualidade, reduzindo o papel dos négociants. O uso do método Sur Lie ganhou força e a maior valorização do terroir conquistou espaço, com os primeiros esforços para a demarcação e vinificação dos melhores vinhedos a partir de meados da década de 1990. Foram dados os primeiros passos para os Cru Communaux, que se tornaram realidade em 2003.
O terroir
A região de Muscadet é marcada por condições climáticas que refletem sua proximidade com o oceano e sua posição geográfica, representando o limite ao norte da viticultura de alta qualidade na França. Não é uma região de grande amplitude térmica, mas marcada por muita umidade ao longo do ano, sobretudo entre outubro e janeiro.
Os vinhedos de Muscadet Sèvre et Maine estão plantados em terrenos com grande diversidade de solos, embora praticamente todos de origens ígnea e metamórfica. Solos como xisto micáceo, gneiss e gabbro dominam a parte norte, enquanto granito com alguma presença de calcário caracteriza o segmento leste. Diversos vinhedos ao longo do Sèvre mostram alta concentração de gabbro.
Os vinhos
Por conta da diversidade de solos, os vinhos desta denominação de origem podem variar bastante, desde vinhos mais leves e perfumados, até aqueles mais complexos e densos, com grande capacidade de evolução. Para ampliar esta diversidade contribui também o método de elaboração adotado, já que o uso do método sur lie resulta em vinhos de maior estrutura, textura e potencial de guarda.
Por conta disso, cerca de 90% dos vinhos elaborados nesta denominação carregam no rótulo a expressão sur lie, indicando esta etapa do processo de vinificação. Na comparação com os vinhos de outras denominações do Muscadet, os vinhos de Sèvre et Maine costumam mostrar maior complexidade e intensidade, além de maior presença de aromas e sabores de maçã e peras mais maduras.
Os Cru Communaux
Assim como a denominação Muscadet Sèvre et Maine impõe regras mais estritas que a Muscadet AOC, o mesmo ocorre com os Cru Communaux. Os três primeiros (Clisson, Gorges e Le Pallet) foram aprovados em 2003, seguidos em 2019 por Goulaine, Château-Thébaud, Monnières-Saint-Fiacre e Mouzillon-Tilières. Em todos eles, as videiras devem ter ao menos cinco anos de idade (na prática entre 30 e 40 anos) e o rendimento máximo é menor (45 hectolitros por hectare, contra 55 hl/ha em Sèvre et Maine e 65 hl/ha na Muscadet AOC).
A perspectiva é que novos Cru Communaux sejam aprovados nos próximos anos, inclusive alguns dentro da Muscadet Sèvre et Maine AOC. Existem discussões também para torná-los denominações de origem independentes, embora sem qualquer data prevista.
Principais produtores
Com uma produção média de 239 mil hectolitros ao ano (que equivale a cerca de 32 milhões de garrafas), há atualmente em torno de 410 produtores na Muscadet Sèvre et Maine AOC. Destes, diversos merecem destaque especial, pela qualidade de seus vinhos e capacidade de inovação. É uma região onde os conceitos de agricultura orgânica e menor intervenção na vinificação vêm ganhando cada dia mais espaço, com uma parcela significativa de seus melhores produtores adotando estas práticas.
Dentre os melhores produtores da região, destaque para Domaine de L’Ecu, Domaine Pierre Luneau-Papin, Domaines Landron, Domaine de la Pépière, Domaine de Bellevue, Domaine Le Fay d´Homme, Michel Brégeon, Domaine Chéreau Carré, Familie Lieubeau, Domaine Gadais Père et Fils, Domaine Louis Metaireau Grand Mouton e Domaine Haute Févrie.
Fontes: Vins Val de Loire; Loire Master-Level Study, Wine Scholar Guild; The Wine Doctor; Muscadet Toward a Renaissance, Jo Landron; Wines and Top Vineyards – The Loire 2022, Benjamin Lewin MW
Mapas: Vins Val de Loire
Imagem: Emeline Boileau/Vins de Nantes
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