Se o vinho existe, é porque uvas foram fermentadas, ou seja, o açúcar foi transformado em álcool, gás carbônico e algumas outras substâncias residuais. E a fermentação em si somente pode ocorrer por conta da ação das leveduras, que são fungos que efetuam esta transformação. Portanto, sem leveduras, não existiria o vinho.
Na natureza existem diversas leveduras que podem realizar a fermentação e muitas delas, inclusive, estão presentes nas cascas das uvas. Porém, uma delas assume um papel preponderante. Ela é a Saccharomyces cerevisiae, que também é responsável pelos processos de fermentação que resultam no pão e na cerveja. Ou seja, não é à toa que alguns a chamam de “rainha das leveduras”, sendo atualmente a mais usada espécie de leveduras para elaboração de alimentos e bebidas do mundo.
Nome, origem e evolução
O nome pode parecer complicado, mas faz sentido. Saccharomyces deriva do grego e significa “fungo do açúcar”, com saccharon se relacionando ao açúcar (lembra de sacarose?) e myces sendo “fungo”. Já a palavra cerevisiae vem do latim, e significa “da cerveja”. Em relação à sua origem, ainda não existe uma teoria aceita universalmente, mas algumas hipóteses chamam a atenção.
Uma delas é que a Saccharomyces cerevisiae teria sido originalmente domesticada na África, com alguns estudos apontando as cascas de algumas árvores nativas da região como seu ambiente original. Um dos fatores que mais dificultam a identificação é a enorme capacidade de mutação desta (e de outras) leveduras. Atualmente existem milhares de cepas distintas de cerevisiae. E cada uma delas traz resultados diferentes, já que as cepas que são responsáveis por pão, cerveja e vinho não são as mesmas.
Parte destas mutações são naturais, porém cientistas acreditam que a maioria delas seja consequências da ação humana, especializando as leveduras na produção de bebidas e alimentos. Atualmente as cerevisiae são segmentadas em cinco grupos distintos: (1) cepas asiáticas, como as leveduras de saquê; (2) leveduras de vinho; (3) um grupo misto, para pão e outras leveduras; e (4) e (5), duas famílias separadas de leveduras para cerveja.
O que faz a cerevisiae especial?
Mas o que faz a Saccharomyces cerevisiae ser tão popular e merecer o apelido de “rainha das leveduras”? A resposta é relativamente simples: sua capacidade de resistir ao álcool. Existem inúmeras espécies de leveduras, mas quase nenhuma consegue completar a fermentação em uma fruta com tantos açúcares como as uvas. Boa parte das leveduras morre quando a graduação alcóolica atinge níveis próximos de 15%, ponto onde somente a cerevisiae e outra levedura, a Saccharomyces bayanus, conseguem ser bastante efetivas.
Na comparação com outras leveduras, a Saccharomyces favorece a fermentação aeróbica em relação à respiração na presença de altas concentrações de açúcar, o que é uma vantagem evolutiva significativa. Assim, a tolerância a altas concentrações de etanol a faz especial, somada ao fato de que ela também resiste muito bem em ambientes ácidos e tem boa resistência aos sulfitos.
Muito estudo e múltiplas versões
Em 1996, a Saccharomyces cerevisiae foi o primeiro organismo eucariótico unicelular a ter todo o seu genoma sequenciado. Esse sequenciamento ajudou a confirmar o longo e detalhado trabalho de cientistas na identificação de diferentes cepas de cerevisiae que são usadas na produção de cerveja, pão e vinho.
Ao analisar o genoma das diversas cepas, os cientistas identificaram que as marcas decorrentes dos processos de domesticação são ainda mais evidentes nas linhagens de leveduras de cerveja. As leveduras de cerveja são tipicamente recicladas após cada lote de fermentação, e como a cerveja é produzida ao longo do ano, isso implica que as leveduras de cerveja estão crescendo continuamente em seu nicho industrial. Isso as faz mais especializadas e mais distantes das leveduras em seu estado natural.
Leveduras no mundo do vinho
No caso das leveduras usadas para a elaboração de vinhos, as diferenças entre as cepas são menores, indicando uma menor especialização do que no caso das cervejas. Assim, mesmo havendo uma enorme variedade de cepas distintas de leveduras no mundo do vinho, suas características fogem menos daquelas em estado selvagem, ou seja, há uma maior homogeneidade genética.
Mas isso não significa que não haja diferenças. Em primeiro lugar, existe uma diferença entre muitas das chamadas leveduras nativas ou indígenas, aquelas que estão presentes nos vinhedos, próximos deles ou nas instalações da vinícola. E, como visto anteriormente, apenas uma parte delas é da família Saccharomyces.
Além disso, os enólogos podem optar também pelo uso de leveduras selecionadas, quase sempre Saccharomyces cerevisiae. Elas podem ser adquiridas como insumo enológico, da mesma forma como compramos fermento no supermercado para fazer pães ou bolos em casa. O uso destas leveduras “não indígenas” pode ajudar o enólogo a controlar melhor o vigor ou velocidade de fermentação, a tolerância à temperatura e a produção de compostos que podem influenciar o aroma do vinho. Embora haja uma crescente controvérsia sobre o assunto, sejam elas indígenas ou selecionadas, não há vinho sem leveduras.
Fontes: Adaptive evolution of wine yeast; Adaptability of the Saccharomyces cerevisiae yeasts to wine fermentation conditions relies on their strong ability to consume nitrogen; A polyploid admixed origin of beer yeasts derived from European and Asian wine populations; Microbial biogeography of wine grapes is conditioned by cultivar, vintage, and climate; Microbial biogeography of wine grapes is conditioned by cultivar, vintage, and climate; Controlled mixed culture fermentation: a new perspective on the use of non-Saccharomyces yeasts in winemaking;
Imagem: Creative Commons
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