Espumantes ingleses são uma realidade. Se anos atrás falar de vinhos elaborados no Reino Unido poderia parecer loucura, o aquecimento global deu o impulso necessário para esta região ganhar importância na viticultura mundial. Embora a produção ainda seja relativamente pequena, a velocidade de crescimento nos últimos anos impressiona e a qualidade também surpreende.
Cerca de 9,3 milhões de garrafas de vinhos britânicos foram vendidas em 2021, um crescimento de 31% frente ao ano anterior. Deste total, cerca de 5,9 milhões foram espumantes, que correspondeu a 63% do total. Mesmo apesar deste rápido avanço, a parcela dos espumantes ingleses do mercado mundial ainda é pequena.
A título de comparação, foram vendidas 320 milhões de garrafas de Champagne em 2021. Já a venda total de espumantes italianos no mesmo período superou 960 milhões. Destes, cerca de 12 milhões eram provenientes da região do Trento DOC, que, assim como os espumantes ingleses, são elaborados usando o método tradicional.
Longa história
Se os espumantes ingleses começaram a frequentar os círculos de amantes de vinho a partir dos anos 1990, a viticultura tem uma história muito mais longa no Reino Unido. Há evidências que os romanos cultivavam vinhedos na Britannia já no primeiro século depois de Cristo. E, quando o assunto é espumante, há inclusive uma disputa sobre a “paternidade” do método moderno de produção.
Muita gente aponta o monge francês Don Pérignon, que assumiu o posto de mestre de adega da Abadia de Hautvillers em 1668, como precursor do método tradicional. Porém, evidências parecem indicar o contrário. Já havia referências de produção de espumantes ingleses em 1662. Foi quando os cientistas Christopher Merret e Sir George Downing apresentaram um artigo sobre o assunto à Royal Society. Eles descreveram detalhadamente o processo de adição de açúcares para produzir vinhos espumantes.
Mesmo sem entrar nesta controvérsia, o fato é que a produção de vinhos na Inglaterra deixou de ser relevante, com os ingleses atuando em um papel distinto. Ao invés de produzir vinhos localmente, investiram no comércio e produção de vinhos em outros países. Assim, deram impulso à produção em regiões como Douro (vinho do Porto), Sicília (Marsala) e mesmo na França, sobretudo em Bordeaux.
Renascimento
A viticultura inglesa moderna surgiu em 1952, quando o primeiro vinhedo comercial foi plantado em Hambledon Vineyard, em Hampshire. Segundo Courtney Schiessl, em um artigo escrito para a GuildSomm, o começo foi difícil. Nas primeiras décadas do vinho inglês, uvas híbridas como Seyval Blanc e cruzamentos alemães como Müller-Thurgau e Bacchus dominaram os vinhedos. O resultado? Vinhos tranquilos, nas palavras de Schiessl, ácidos e pouco inspiradores.
Esta opinião é compartilhada por Simon Robinson, presidente da Wines of Great Britain (WineGB) e fundador da Hattingley Valley, em Hampshire. As coisas mudaram em 1988, quando um casal norte-americano, Stuart e Sandy Moss, reconheceu o paralelo entre os solos de calcário do sul da Inglaterra com aqueles de Champagne. Eles decidiram plantar Chardonnay, Pinot Noir e Pinot Meunier em sua propriedade Nyetimber em Sussex, com a noção explícita de fazer vinho espumante de método tradicional. Para Robinson “Esse foi o principal insight que desencadeou tudo”.
Desde então, o crescimento do vinho na Inglaterra vem sendo impressionante. Na década de 1980, 211 hectares de vinhedos foram plantados no Reino Unido, número que subiu para 683 hectares na década de 2000 e 2.200 hectares na década seguinte. E a tendência continua, com estimativas indicando que, somente em 2020 e 2021, foram 753 hectares de novos vinhedos.
Anatomia dos vinhedos e produção
A área plantada com videiras no Reino Unido atingiu 3.758 hectares em 2021, um crescimento de 70% em cinco anos. Deste total, 98% eram localizados na Inglaterra, com o restante concentrado, sobretudo, no País de Gales. Eram 897 vinhedos distintos, com 197 vinícolas atuantes, das quais 195 na Inglaterra. Quatro regiões inglesas se destacam: Kent (que lidera o ranking, com quase 900 hectares plantados), West Sussex, Essex e East Sussex.
Em termos de variedades plantadas, três uvas correspondem a cerca de 71% dos vinhedos: Chardonnay (1.179 hectares), Pinot Noir (1.164 ha) e Pinot Meunier (327 ha). Elas foram também responsáveis por 82% dos novos vinhedos plantados nos últimos cinco anos. As demais uvas relevantes são todas híbridas ou cortes alemães, como Bacchus (264 ha), Seyval Blanc (117 ha) e Solaris (93 ha). Há também pequenas áreas plantadas com Reichensteiger, Rondo, Pinot Gris e Müller-Thurgau.
Sendo uma região sujeita a fortes variações climáticas, o volume produzido varia bastante de acordo com a safra. A produção total de vinhos no Reino Unido em 2017 foi de 5,3 milhões de garrafas, explodindo para 13,10 milhões em 2018 e 10,5 milhões em 2019. Desde então, está estável em uma faixa próxima a 9 milhões de garrafas. Entre os espumantes, em 2021 81% eram brancos e 19% rosés, com 98% do total sendo elaborado pelo método tradicional.
Geologia e clima
Diversas áreas na parte sul da Inglaterra têm os mesmos solos de giz calcário e ótima drenagem encontrados na região de Champagne. Deste modo, escolhendo locais com maior exposição ao sol e voltados para o sul, é possível obter bom perfil de maturação para as três variedades clássicas de Champagne.
O principal diferencial natural em relação à Champagne é o clima. “O clima é sempre o maior desafio”, de acordo com Robinson. A região de South Downs da Inglaterra tem uma latitude de 51 graus, 2 graus ao norte de Champagne, com temperaturas um pouco mais frias e dificultando o amadurecimento. Porém, o principal obstáculo parece ser a variabilidade do clima.
Enquanto a Champagne apresenta um clima mais continental, o padrão climático na Inglaterra é menos previsível, por ter um perfil oceânico. Por conta disso, além de uvas levemente mais ácidas como resultado das menores temperaturas, existe uma variação muito maior entre safras.
Perspectivas
Em 2022, o Reino Unido ganhou sua primeira denominação de origem para vinhos, um passo importante para seu reconhecimento também como produtor de vinhos de qualidade. Porém, mais que a ação humana, a viticultura na Inglaterra e País de Gales conta com um poderoso aliado: o aquecimento global. Como não há qualquer evidência que este fenômeno será revertido nas próximas décadas, o potencial do Reino Unido como produtor de vinho somente deve se fortalecer.
Pesquisadores indicam que, nas próximas duas décadas, o clima de boa parte da Inglaterra e do País de Gales deve se tornar adequado para o cultivo confiável de variedades usadas em vinhos espumantes. As condições observadas no ano de 2018, quando se registrou o recorde de produção de vinho do Reino Unido, devem se tornar a “norma” em diversas regiões britânicas. Isso significa temperaturas equivalentes a algumas das famosas áreas produtoras de vinho da França e da Alemanha.
No período até 2040, áreas em East Anglia, Lincolnshire, centro-sul da Inglaterra, nordeste do País de Gales e áreas costeiras no sudoeste da Inglaterra e no sul do País de Gales devem ter condições equivalentes a 2018 em torno de 60-75% do tempo. Assim, a safra excepcional vista naquele ano serve de incentivo para o crescimento da viticultura local.
Principais produtores
Infelizmente, os espumantes britânicos ainda não importados para o Brasil, mas vale a pena conhecer um pouco sobre seus principais produtores. Pioneira, a Nyetimber conseguiu emplacar seus espumantes em muitos dos melhores restaurantes de Reino Unido e outros países europeus, até por conta das diversas premiações recebidas. Atualmente com cerca de 325 hectares de vinhedos em diversas regiões, como Sussex, Hampshire e Kent, sua produção superou 1 milhão de garrafas em 2022.
Outros produtores locais de destaque são Gusborne, com 90 hectares de vinhedos e Chapel Down, que vendeu algo próximo a 800 mil garrafas em 2022. O potencial desta região também atraiu o interesse de produtores tradicionais da Champagne. Em 2017 a Taittinger se tornou a primeira Maison francesa a plantar videiras no país, seguida logo depois pela Champagne Pommery.
Fontes: WineGB Industry Report; Seven Fifty Daily; Perspective; Nyetimber; Gusborne; The Drinks Business; Wine Business International
Imagem: Arquivo pessoal
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