Localizada em uma das regiões mais quentes da Europa, a produção de vinhos na Andaluzia é imediatamente associada ao Jerez, um dos estilos de vinhos mais antigos e tradicionais do mundo. E não é à toa. Com cerca de 18 mil hectares de área plantada, a zona de produção de Jerez domina os vinhedos da região e a de maior prestígio no mercado internacional.
Mas o Jerez não é o único vinho andaluz. Muito menos o mais antigo. Na coluna desse mês iremos abordar uma denominação de origem que vem despertando interesse não apenas de críticos e enófilos, mas principalmente entre sommeliers ávidos por explorarem vinhos com potencial de harmonizar pratos da alta gastronomia. Pouco conhecidos e distribuídos no Brasil, os vinhos dessa região oferecem um enorme potencial por ser capaz de entregar a rara combinação de boa qualidade e preços atrativos.
Foto extraída do Site do Consejo Regulador, sobreposta com o logo do orgão
A D.O. Montilla-Morilles
A zona de produção da DO Montilla-Moriles está localizada no centro da Andaluzia, ao sul da cidade de Córdoba. Acredita-se que a produção de vinhos na área é anterior a de seu vizinho famoso, Jerez. Aliás, muitos dos vinhos comercializados como Jerez, antes da regulamentação da D.O. Jerez, na década de 1930, eram oriundos de Montilla-Moriles.
A área de produção é delineada por dois rios, o Guadazoz ao nordeste e o Genil ao sudoeste. Contempla 17 cidades, sendo Montilla e Moriles as duas principais e consideradas as mais nobres em termos de produção. Isso se deve a altitude em que estão localizadas, aliadas à qualidade do solo, muito similar ao do Jerez o famoso solo de albariza. A temperaturas elevadas são parcialmente compensadas pela altitude e a composição do solo, capazes de reter umidade, nutrientes e refletir os raios solares, criando um microclima relativamente mais ameno que o do restante da área.
Pedro Ximénez a principal uva
A variedade Pedro Ximénez (PX) reina suprema na área. É predominante nos diferentes estilos de vinhos produzidos na área e que iremos apresentar a seguir. Vale dizer que a PX produzida aqui não é apenas legalmente autorizada, mas absolutamente essencial no abastecimento dos elementos que aportam a doçura para os Vinos Generosos de Licor de Jerez (Jerez que mistura vinhos doces com secos, como o Cream, Medium e Pale-Cream), além de serem permitidos na elaboração do Jerez PX. Interessante observar que a zona produtora de Jerez não é capaz de abastecer toda a necessidade da variedade PX. Por conta disso, desde sua criação, foi permitido usar uvas cultivadas em Montilla-Moriles.
A área plantada corresponde a cerca de 5,01 mil hectares, sendo que PX corresponde a mais de 90% do total que é complementado com variedades como Lairén, Jaén Blanco, Moscatel de Grano Menudo, Torrontés e Moscatel de Alexandria, dentre outras.
Os estilos dos vinhos da D.O. Montilla-Moriles
Apesar de não estar localizada numa região próxima ao mar, e ser por consequência menos úmida, o desenvolvimento da Flor, o véu de levedura que cobre o vinho na barrica parcialmente preenchida e que é a assinatura do Jerez, também acontece aqui. Porém, a Flor em Montilla-Moriles é geralmente mais fina e menos resistente que a formada em Jerez. Isso resulta em vinhos com mais cor e menos pungência que o Jerez, mas ainda assim com as notas oxidativas, geralmente menos marcantes.
Enquanto o Jerez seco é produzido com a uva Palomino Fino e os doces com a PX e Moscatel, em Montilla-Moriles a PX é a variedade predominante, seja para o vinho seco ou doce. E na maioria das vezes é a única variedade utilizada, especialmente nos rótulos mais nobres.
Os vinhos são rotulados como Fino, Amontillado (um termo que foi originado em Montilla e posteriormente adotado em Jerez), Oloroso, sendo que em nenhum caso o termo Jerez (ou Sherry) pode ser utilizado. A PX naturalmente amadurece com potencial de atingir 15% de teor alcoólico e o estilo Fino não é fortificado, em contraste com os Finos produzidos em Jerez. Já os Amontillados e Olorosos são fortificados, o que significa que recebem a adição de álcool vínico.
Montilla PX
Já o Montilla PX é produzido rigorosamente igual ao Jerez PX. Isso implica que as uvas colhidas em agosto passam por um processo de secagem ainda no vinhedo sobre cestas abertas com a foto que abre essa coluna. Por 4-10 dias as uvas passam por um processo de desidratação conhecido como soleo ou assoleado, que concentra o açúcar das uvas e dobra o potencial alcoólico, que resultará em vinhos com um mínimo de 400 gramas por litro (isso mesmo, você não leu errado: é tudo isso de açúcar mesmo).
Com tal quantidade de açúcar no mosto, as leveduras não conseguem atingir mais do que 4% de teor alcoólico no vinho. Então acontece a fortificação, quando álcool vínico é adicionado, resultando num vinho com 15% abv e extremamente doce. Em seguida, a exemplo do que ocorre com o Jerez, o vinho passa por um processo de envelhecimento pelo sistema conhecido como Solera, onde a evaporação é completada com vinho jovem, num processo que pode levar décadas. E quanto mais o tempo passar, mais os sabores do vinho se concentram e os mais evoluídos são capazes de se livrarem do exagero típico de um PX jovem e se revelarem soberbos.
A “nova” Montilla-Moriles
Até aqui, ficou claro que a região se desenvolveu na sombra de seu vizinho famoso. Na década de 1930, quando a zona produtora do Jerez delimitou sua área, Montilla-Moriles sofreu um duro golpe. Deixou de ser um produtor de Jerez e passou a ser um coadjuvante e “imitador” do estilo (apesar de ter criado o termo Amontillado). Mas manteve destaque na produção do PX. Até a década de 1980, quando os vinhos doces de Jerez dominavam o mercado inglês, Montilla viveu um bom período, como fornecedora de vinhos a base de PX, usados nos blends.
Porém, quando a maré virou para os vinhos doces de Jerez exportados para os grandes mercados, principalmente a Inglaterra, que perdeu 75% do volume que comercializava na década de 1980, a região foi obrigada a buscar novos rumos.
Esse novo estilo, que passa ao largo do tradicional vinho doce, são vinhos jovens, produzidos com PX, envelhecidos em ânforas com uma discreta Flor, resultando num vinho de tipicidade própria. Lembra Jerez, mas por outro lado não é seco como Jerez. Tem as notas oxidativas, mas também entrega fruta e outros aromas. Continua sendo seco, mas entrega uma boa acidez e corpo médio
Alguns produtores de destaque da D.O. Montilla-Moriles
A Bodega Alvear é a mais antiga da Andaluzia e a segunda mais antiga da Espanha. O nome do jogo aqui, como não poderia ser diferente é a tradição. A Alvear faz parte da Grande Pagos e produz grandes Rare Old Wines, com o rótulo Sacristia. Também produz vinhos secos, com a marca Ribera del Guardiana, com rótulos representando o novo estilo da região
Bodegas el Monte produz o estilo tradicional, sendo o Fino Cebolla um dos clássicos da região. Sua linha de vinho envelhecidos (viejos) recentemente conquistou pontuações relevantes em torneios relevantes e mereceram críticas positivas.
Tora Albala é um dos grandes nomes da região. Além de contar com uma importante coleção de vinhos envelhecidos, produz o Fino Elétrico. O nome é referência a antiga instalação da vinícola, uma estação de geração de energia que funcionou até 1922, quando foi convertida em vinícola. Esse talvez seja o rótulo mais representativo da D.O. Montilla-Moriles. Mal comparando, seria o Tio Pepe local.
Bodegas Robles. Diferente das três vinícolas anteriores, essa não frequenta o pelotão de produtores de elite e seus vinhos envelhecidos (viejos) não gozam do prestígio dos demais. Porém, o seu rótulo Piedra Luenga Fino talvez seja um dos melhores representantes do novo estilo. Com breve processo de envelhecimento sobre a Flor e em ânforas, é um vinho fresco, quase frutado. Um Fino que mostra notas tímidas de oxidação e como não é fortificado, é um vinho jovem, maduro e redondo.
Muito além de um coadjuvante do Jerez
É uma grande injustiça tratar a D.O. Montilla-Moriles como mero coadjuvante de Jerez. Apesar de ter vivido a sombra do vizinho famoso e ter surfado na onda do alto volume da exportação do Jerez doce até a década de 1980, a região produz um vinho com estilo próprio e muito interessante.
Para além dos PX envelhecidos, a região oferece ótimas alternativas. E aqui cabe um parêntese: o vinho PX (de Jerez e Montilla-Moriles) é completamente diferente quando envelhecido. Jovem, é um vinho extremamente doce, enjoativo e que não merece grandes destaques. Porém, vinhos PX submetidos a décadas de “afinalmento” nas Soleras se transformam numa bebida especial e marcante.
Numa visita recente à Espanha, tive a oportunidade de ir a cinco refeições em restaurantes com estrela Michelin e um outro com a categoria Bib Gourmand. Em todos eles, optei pelo menu harmonizado. E em todos eles foram servidos vinhos dessa região. Coincidência ou não, isso me fez pesquisar e buscar experimentar o que consegui achar. E posso dizer que tive boas surpresas.
Renato Nahas é um grande apreciador de vinhos que adora se aprofundar no tema. Concluiu as certificações de Bourgogne Master Level da WSG, e também de Bordeaux ML. É formador homologado pelo Consejo Regulador de Jerez e Italian Wine Specialist – IWS e Spanish Wine Specialist – SWS.. Sommelier formado pela ABS-SP, possui também as seguintes certificações: WSET3, FWS e CWS, este último pela Society Wine Educators.
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Foto da capa: Renato Nahas, arquivo pessoal
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