O Vale do Loire é a mais complexa dentre as regiões vinícolas francesas, tamanha a diversidade de seus vários terroirs. Mesmo se considerarmos somente uma de suas sub-regiões, a da de Anjou-Saumur, a complexidade ainda chama a atenção. Mas algo é simples de entender no Loire: existe apenas uma denominação de origem classificada como Grand Cru.
Tendo obtido esta classificação somente em 2011, Quarts de Chaume Grand Cru tem, porém, uma longa história e muita tradição. Com uma área total de 42 hectares, dos quais apenas 26 hectares atualmente em produção, permite a elaboração de apenas um tipo de vinho. São vinhos brancos doces, elaborados a partir da Chenin Blanc. Se existe pouca diversidade, a qualidade, por sua vez, é indiscutível: são alguns dos melhores moelleux (usando o termo local para vinhos doces não licorosos) da França.
Origem e nome
Os vinhedos de Quarts de Chaume têm uma longa tradição, com pelo menos 1.200 anos de viticultura. Em 1028, o poderoso Conde de Anjou, Foulques Nerra, doou à Abadia de Ronceray (localizada em Angers) uma faixa de terra às beiras do rio Layon, que incluía a aldeia de Chaume. Usando um modelo adotado em diversas partes da França, chamado de tenure paysanne, as freiras de Ronceray mantiveram a posse, mas repassaram o cultivo da terra aos camponeses locais.
Neste modelo, o proprietário da terra recebia 25% da colheita, geralmente o melhor quarto da produção. É desta prática que se origina o nome Quarts de Chaume. Ele inclui, assim, as parcelas de vinhedos de melhor qualidade, de onde saíam o quarto da produção destinado à abadia. Isso evidencia o quanto o conceito de terroir tem raízes antigas na França, sobretudo quando ordens religiosas estão envolvidas na produção de vinhos.
Vinhos excepcionais
A alta qualidade deste vinhedo não tinha reconhecimento somente pelos locais. No século XVI os holandeses, que tiveram importante papel no desenvolvimento da vinicultura do oeste da França, destacavam a qualidade dos vinhos de Quarts de Chaume. Esta situação seguiu praticamente inalterada até 1789, quando, por conta da Revolução Francesa, houve o confisco das terras da igreja.
Apesar dos novos proprietários, a reputação dos vinhos seguiu inalterada. Os vinhos eram caros e avidamente disputados em meados do século XIX. Os moelleux de Quarts de Chaume eram famosos antes mesmo da classificação de outros vinhos doces franceses. Foi somente em 1855, por exemplo, que foi feita a classificação dos vinhos doces de Sauternes e Barsac, na região de Bordeaux.
No entanto, a segunda parte do século XIX foi difícil para a região de Anjou. Com chegada da filoxera, muitos vinhedos definharam e algumas áreas de cultivo mais difícil, por conta de sua topografia (as encostas do rio Layon entre elas), foram abandonadas. A mudança no padrão de consumo a partir do século XX, com menor demanda por vinhos doces, também prejudicou a vinicultura local.
A denominação de origem
Apesar da reputação de seus vinhedos, a aprovação da denominação de origem Quarts de Chaume ocorreu somente em 1954, quase 20 anos após as primeiras apelações de origem francesas. Para a definição da área, foi usado um conceito peculiar: Le Tènement de Chaume. De forma resumida, com menções a três lieux-dits particulares (Les Quarts, Les Rouères e Le Veau), quem era o dono das parcelas fez a diferença. Foram levados em conta, com algumas exceções, as parcelas em Chaume nas mãos de cinco famílias: Breyer Frères, Courtillé, Mignot, Hariat e Bernard.
Para entender a denominação Quarts de Chaume, vale a pena dar um passo atrás e conhecer como funciona o “sistema de guarda-chuvas” dos vinhos doces nas margens do rio Layon. A denominação de origem mais ampla é Côteaux du Layon (em laranja claro no mapa abaixo). A seguir, em hierarquia crescente, vem Côteaux du Layon Village (são seis vilarejos que podem colocar seus nomes como sufixo, em laranja escuro no mapa).
Parte dos vinhedos de um destes vilarejos (Rochefort-sur-Loire) recebeu a classificação de Côtes du Layon Premier Cru Chaume (em laranja ainda mais escuro). Por fim, a parte mais nobre deles forma o Quarts de Chaume Grand Cru.
Critérios rigorosos
A diferença entre estas denominações de origem não está somente na geografia. Há crescentes requisitos em termos de rendimentos máximos, potencial de álcool e uso de técnicas de vinificação. Por exemplo, o rendimento máximo em Quarts de Chaume é de 20 hectolitros por hectare e o álcool potencial é de 18%. Na comparação, eles são, respectivamente, 35 hl/ha e 14% em Côteaux du Layon e 30 hl/ha e 15% nos Villages. A partir de 2020, a elaboração dos vinhos de Quarts de Chaume não pode mais contar com a técnica de crio-extração (usada para aumentar a proporção de açúcar no mosto). A chaptalização também é proibida.
Desde que a denominação de origem foi elevada a Grand Cru, foram colocadas em prática regras mais rigorosas. A densidade mínima nos vinhedos é de 5.000 vinhas por hectare, com uma distância máxima de dois metros entre cada fileira de vinhas. A distância mínima entre cada vinha é de um metro, e a altura máxima das videiras também foi reduzida.
Localização e produção
Quarts de Chaume fica na margem direta do rio Layon, dentro da commune de Rochefort-sur-Loire. Ela fica a cerca de 27 quilômetros a sudoeste de Angers, a principal cidade da região de Anjou. Por conta da pequena área de vinhedos, a produção anual média fica na faixa de 330 hectolitros, ou cerca de 44 mil garrafas. Além disso, nem todos os vinhos elaborados a partir destes vinhedos podem ser engarrafados como Quarts de Chaume Grand Cru.
Caso o produtor decida vinificar em estilo seco, o vinho deve ser rotulado como Anjou Blanc ou Vin de France, fora da denominação, portanto. O vinhateiro também tem a opção de usar as uvas para elaborar espumantes ou mesmo vinhos doces com critérios menos rigorosos, também não classificados como Quarts de Chaume Grand Cru. Por conta disso, a produção desta denominação varia bastante de acordo com as safras e com a percepção de qualidade das uvas pelos produtores.
Terroir específico
Os solos desta área são bastante complexos, com alta concentração de xisto da era Brioveriana (entre 750 e 540 milhões de anos atrás). Trazem também componentes da era Carbonífera, incluindo quartzo, cinza vulcânica, arenito e solos conglomerados. Na comparação com Coteaux du Layon Premier Cru Chaume (ver mapa abaixo), concentra alguns dos lieux-dits (em rosa no mapa abaixo) mais próximos do rio Layon, todos de orientação sul.
Estes lieux-dits, situados na margem direita do Layon, ficam em uma área onde o rio faz uma curva mais acentuada. Por conta disso, ocorre o bloqueio do vento frio proveniente do Norte e cria-se uma espécie de anfiteatro, com temperaturas mais altas e névoa mais intensa pela manhã. Estas condições são ideais para o desenvolvimento da botrytis, o que ajuda a explicar por que os vinhos desta denominação de origem são aqueles com maior concentração de açúcar no mosto entre todos os vinhos não-fortificados na França.
Vinhos e produtores
Os vinhos de Quarts de Chaume ficam dentre os melhores vinhos doces da França. Mostram coloração amarelo brilhante quando jovens, mas quando evoluídos apresentam reflexos dourados, tendendo ao âmbar. São vinhos complexos e intensos, porém elegantes, com aromas primários florais e de frutas brancas e cítricas, que se transformam em notas de frutas especiadas, mel e damasco. Com muita acidez e mineralidade, são vinhos que evoluem muito bem e podem durar décadas.
Vale sempre destacar que, apesar de equilibrados, são vinhos untuosos e muito doces, até por conta das regras adotadas. Existe um requisito para o açúcar residual, com teor mínimo fixado em 85 g/l, o mais elevado dentre todas as denominações de origem do Loire. A título de comparação, o requisito mínimo é de 80 g/l para Coteaux du Layon Premer Cru Chaume, 51 g/l para Bonnezeaux e 34 g/l para Coteaux du Layon.
No total, são cerca de 20 produtores distintos atuando em Quarts de Chaume. Porém, nem todos produzem de acordo com as regras da denominação de origem todas as safras. Exemplos clássicos destes vinhos tão especiais são elaborados por alguns produtores de maior destaque, como Patrick Baudouin, Domaine de la Bergerie, Domaine des Forges, Domaine Ogereau, Domaine du Petit Val, Château Pierre Bise e Domaine Belargus.
Fontes: Loire Master Level Study Manual, Wine Scholar Guild; Vins du Val de Loire; The Wine Doctor; Cahier des Charges de L’appellation d’origine Contrôlée Quarts de Chaume
Imagem: Vins du Val de Loire creator BURET Laurie-Anne
Mapas: Vins du Val de Loire; Fédération Viticole Anjou-Saumur
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