Talvez não seja exagero afirmar que os vinhos do Etna atingiram nos últimos anos um patamar de qualidade jamais visto anteriormente. Seus tintos, elaborados sobretudo a partir da Nerello Mascalese, conseguem combinar elegância, precisão, alta acidez e taninos finos, colocando esta região em destaque mesmo em um país como a Itália, conhecido pela alta qualidade de seus vinhos tintos.
Os vinhos brancos do Etna, porém, não ficam atrás. Além do enorme avanço nas técnicas de vinificação nas últimas décadas, pesa muito o terroir diferenciado da região. São solos vulcânicos, que aportam muita mineralidade, combinado com altitude (não são poucos os vinhedos acima de 800 metros de altitude) e grande presença de vinhas velhas. Esta combinação de fatores permite à região do Etna combater o impacto do aquecimento global de forma surpreendente.
Porém, existe também a questão da tradição. Embora os vinhos do Etna tenham ganhado muita projeção recentemente, a viticultura está presente na região há milhares de anos. Assim, para entender melhor seus vinhos de hoje, vale a pena embarcar na máquina do tempo e conhecer a longa e rica história do Etna.
História e mitologia
Falar em história na Sicília implica em mergulhar em um passado distante. O primeiro assentamento grego foi Naxos, que fica na costa leste da ilha, aos pés do vulcão. E foram os gregos que possivelmente trouxeram a viticultura para a região do Etna, entre 800 e 600 antes de Cristo, com esta atividade ocupando uma posição de destaque. Moedas cunhadas em Naxos entre 550 e 530 AC trazem representações de uvas. Vale lembrar que o vinho possuía um importante papel nos cultos Dionísicos, parte integral das manifestações religiosas dos gregos antigos.
O vinho da Sicília, possivelmente do Etna, tem também presença de destaque na mitologia grega. Foi com o potente vinho da região que Ulisses, o herói da Odisseia, teria embebedado Polifemo, o gigante de um olho que mantinha o herói e seus companheiros cativos. Na obra de Homero, a Sicília seria a ilha dominada pelos Cíclopes, estes míticos gigantes que teriam tentado evitar a volta de Ulisses para Ítaca após a Guerra de Troia.
Vinhos de grande reputação
Os gregos, porém, deram apenas início à longa trajetória dos vinhos do Etna. Os romanos, que conquistaram a Sicília gradualmente entre 260 e 210 AC tiveram um papel fundamental na viticultura da região. A produção de vinhos ao redor do Etna aumentou de forma significativa, impulsionada pela fertilidade dos solos vulcânicos.
O avanço, porém, não foi apenas em termos de quantidade. Há diversos relatos datados em torno de 200 AC que colocam os vinhos do Etna entre os melhores do mundo. A Sicília, na época, era um dos principais celeiros de Roma, provendo à república romana uma grande variedade de produtos agrícolas, inclusive o vinho.
Idade Média e importância econômica
A viticultura seguiu presente no Etna mesmo durante o turbulento período que sucedeu ao Império Romano. Nem mesmo as invasões de povos bárbaros, seguidas pela conquista da área pelos bizantinos, árabes e normandos colocaram fim à longa tradição local. Em 1435, já no período da dominação aragonesa, foi estabelecida em Catania a Maestranza dei Vigneri, uma associação de produtores da região.
Durante os séculos seguintes os vinhos do Etna seguiram em alta, inclusive sendo exportado para outras regiões europeias, como Itália continental e Alemanha, como atestam documentos de 1569. A partir de 1700, as exportações ocupavam importante espaço, com o vinho sendo um dos principais produtos comercializados a partir do porto de Riposto.
O boom do século XIX
Foi durante o século XIX, porém, que o vinho atingiu o seu pico de produção no Etna. Dados do censo de 1844 mostram que videiras ocupavam mais de 50% da área plantada na região, a mais alta proporção de toda a Sicília. Na sub-região de Milo, até hoje conhecida pela alta qualidade dos seus vinhos brancos, esta parcela atingia 70%. Em 1848, a área plantada atingia cerca de 25.600 hectares.
A chegada da filoxera aos vinhedos europeus (a França reportou os primeiros casos em 1866) fortaleceu ainda mais o crescimento dos vinhedos do Etna. Com a abrupta queda de produção em muitas regiões europeias, os vinhos da região passaram a ser exportados para toda a Europa, chegando inclusive ao Novo Mundo. Estima-se que, entre 1880 e 1890, a área plantada com videiras na província de Catania tenha atingido 91.800 hectares, dos quais 50% nas encostas do Etna.
Em 1881 foi fundada em Catania uma escola de enologia, uma das pioneiras na Itália. A imensa maioria da produção era exportada a granel, usando a infraestrutura de uma ferrovia construída para levar a produção ao porto de Riposto. Na década de 1890 surgiram as primeiras vinícolas engarrafando seus vinhos próprios e alguns deles foram premiados no Exposição de Paris, em 1900.
O forte e longo declínio
Porém, este boom teve fim a partir dos primeiros anos do século XX. De um lado, a produção de vinho no restante da Europa mostrou forte recuperação nas décadas anteriores, por conta do uso de videiras implantadas resistentes à filoxera. Além disso, a praga chegou também ao Etna, dizimando uma parte importante de seus vinhedos. Outros fatores que contribuíram para o declínio foram os altos impostos, as erupções do vulcão, as duas Guerras Mundiais e crescente perda de mão de obra na região.
Além disso, uma área importante de vinhedos foi destruída em função da expansão da área urbana da cidade de Catania e por conta da substituição das videiras por outras culturas mais rentáveis, com destaque para os cítricos. Nem mesmo a criação, em agosto de 1968, das primeiras denominações de origem da região (Etna Rosso, Etna Bianco, Etna Rosato e Etna Bianco Superiore) conseguiu conter o declínio da área de vinhedos. Em 1980, estima-se que a área de vinhedos era de apenas 5.000 hectares.
O renascimento
A partir do final da década de 1980, porém, a vinicultura no Etna despertou após um longo período de decadência. O perfil, porém, mudou completamente. A região deixou de ser uma fornecedora de vinhos baratos e a granel, para focar na elaboração de vinhos de qualidade, que reflete o terroir diferenciado do Etna. Atualmente, a á área de vinhedos é de apenas 1.800 hectares, mas com foco em vinhos de alta gama.
Dois fatores ajudam a explicar este renascimento. De um lado, sobreviveu a forte tradição de viticultura de qualidade. Existem poucas regiões no mundo com presença tão difundida de videiras velhas, algumas dela pré-filoxéricas. Além das condições naturais, pesou muito a qualidade dos viticultores locais, que mantiveram tradições seculares, inclusive o sistema de condução em arberello.
O que faltava era a adoção de técnicas de vinificação mais avançadas, com foco mais na qualidade do que na quantidade. E isso ocorreu nos últimos anos séculos do ano passado, tanto com a chegada de produtores de outras áreas como pela presença de alguns talentos locais.
Os pioneiros
Em 1988 Giuseppe Benanti fundou a vinícola que leva seu nome e, com a fundamental contribuição do pesquisador e enólogo local Salvo Foti, começou a elaborar seus primeiros vinhos em 1990. Era uma época quando praticamente não havia vinícolas independentes na região (com poucas exceções, como Murgo) e pequenas cooperativas. Em 1999, a histórica vinícola Ciro Biondi (que elaborava vinhos premiados antes do Primeira Guerra Mundial) renasceu.
O início dos anos 2000 foi marcado pela chegada de novas ideias e conceitos. O ítalo-americano Marco de Grazia chegou em 2000, comprou uma parcela da Contrada Guardiola em 2001 e criou a Tenuta delle Terre Nere. Em paralelo, Andrea Franchetti, já vinicultor de destaque na Toscana, fundou a Passopisciaro em 2000 e lançou seu primeiro vinho no ano seguinte. O ano de 2001 marcou também a chegada do belga Frank Cornelissen.
O novo boom
A partir do enorme patrimônio herdado da tradição passada (não faltam no Etna pequenos terraços de vinhedos) e dos esforços deste pequeno grupo de produtores, o vinho no Etna renasceu. Se em 2008 eram menos de 40 vinícolas na região, este número atualmente supera 220, com crescente preocupação com a recuperação de vinhedos antigos e elaboração de vinhos de alta qualidade.
Ainda existe muito espaço para expansão, mas o rumo da viticultura no Etna parece ter outra prioridade. Não há dúvidas que esta seja uma região diferenciada para a produção de vinhos de alta gama e as apostas são todas neste sentido. Resta saber se a região irá resistir às tentações de trocar a qualidade pela quantidade, mas valiosas lições do passado não faltam para evitar que isso aconteça.
Fontes: Etna: I Vini del Vulcano, Salvo Foti; Entrevistas com diversos produtores
Imagens: Arquivo pessoal, Passopisciaro
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