Vouvray e Chenin Blanc: um casamento perfeito. Situado no coração da região de Touraine e às margens do Loire, este vilarejo dá nome à denominação de origem, com seu passado e presente intrinsicamente ligados com esta uva. Possivelmente cultivada nestas encostas desde o início da Idade Média, a Chenin Blanc mostra em Vouvray toda a sua versatilidade. Isso sem falar de níveis de qualidade poucas vezes igualados.
Para os padrões do Vale do Loire, é uma região que consegue combinar qualidade com quantidade. Em Vouvray são elaborados vinhos tranquilos, espumantes e doces, reconhecidos pela sua qualidade há séculos por amantes do vinho, sejam eles reis, rainhas, escritores famosos ou meros apreciadores. Ao contrário de diversas outras denominações do Loire, quantidade também não é problema. A produção média anual fica na faixa de 16 milhões de garrafas, um número significativo para a região.
Monges, literatura e realeza
Os romanos são considerados os primeiros a cultivar videiras em Vouvray. Porém, há um personagem que simboliza o início da viticultura não somente na região, mas também em boa parte da França. Logo após a fundação da Abadia de Marmoutier, em 372, São Martinho teria plantado as primeiras videiras nas colinas em torno da abadia. Isso o faz um dos pioneiros no longo envolvimento das ordens religiosas com o vinho na França.
Sabe-se que pelo menos desde o início do século XIII ocorre o cultivo de variedades brancas nos vinhedos em encostas e com solo calcário da região, até hoje responsáveis pelos terroirs mais disputados. Textos antigos atestam que a Chenin Blanc, localmente chamada de Pineau de la Loire, era a variedade nobre da região. Rabelais, um dos maiores escritores da língua francesa, deixou isso claro em sua obra Gargantua: “É o vinho Pineau. Ó grande vinho branco! E para minha alma, é mais que vinho, é tafetá”
A transferência da capital da França para Tours em 1428, com a presença dos reis da França nos castelos da região de Touraine nos séculos XV e XVI, também ajudou muito a promover o desenvolvimento e a reputação dos vinhos na região. Alguns dos famosos crus de Vouvray pertenciam à coroa francesa e seus vinhos figuravam em destaque na mesa do rei e da nobreza.
Exportações, declínio e renascimento
Os vinhos de Vouvray não eram apenas apreciados na França. A partir do século XVI, mercadores holandeses transportavam os vinhos da região não somente para a maior potência mundial da época, mas também para outros destinos, sobretudo outros mercados do norte da Europa. A viticultura na Touraine viveu um período áureo, começando a perder espaço somente os conflitos religiosos na França, e, posteriormente, com a Revolução Francesa de 1789.
Este declínio foi acelerado com a chegada da filoxera na região, na segunda metade do século XIX. Gradualmente, porém, os viticultores da área juntaram forças e se organizaram. Em 1906, foi criado o sindicato dos produtores de Vouvray. O intuito foi defender o vinho local de comerciantes desonestos que vendiam vinhos de baixa qualidade de outras regiões com o nome Vouvray.
Em 1929, estabeleceu-se que apenas os vinhos produzidos no território das comunas de Vouvray, Vernou, Chançay, Noizay, Reugny, Rochecorbon e Sainte-Radegonde podiam usar a denominação Vouvray. Este processo culminou com a aprovação da denominação de origem Vouvray, em 8 de dezembro de 1936.
Plantando o futuro
A denominação de origem Vouvray conta atualmente com cerca de 2.250 hectares de vinhedos, espalhados por oito vilarejos diferentes (Parçay-Meslay foi incluído em 1936). Somente duas uvas são permitidas: Chenin Blanc e Orbois, que pode ser usada em até 5% do corte. Contando com cerca de 160 vinicultores, a produção anual média fica na faixa de 118 mil hectolitros, uma das maiores no Loire. Isso corresponde a aproximadamente 16 milhões de garrafas.
Confirmando a versatilidade da Chenin Blanc, cerca de 60% da produção é engarrafada como espumantes (mousseux e pétillant), a segunda maior do Loire, somente atrás da Crémant du Loire AOC. Os demais 40% são engarrafados como vinhos tranquilos, tanto secos como semi-secos ou doces. Vale a pena lembrar que a proporção entre diversos estilos varia bastante de acordo com as condições das safras.
Por exemplo, em safras mais frias, como 2011, muitos produtores optaram por uma maior proporção de espumantes, por conta da menor maturação das uvas. Em anos mais quentes, por outro lado, cresce a fatia dos vinhos tranquilos semi-secos e doces. Um exemplo foi 2003, quando a produção de vinhos moelleux cresceu de forma significativa.
Localização e terroir
Localizada a nordeste da cidade de Tours, na margem direita do Loire, a área da denominação de origem Vouvray estende-se por um planalto entalhado por vários pequenos vales. Boa parte deles termina em um penhasco íngreme junto ao maior rio da França (ver mapa abaixo). Este planalto, de relevo bastante irregular, conta com vinhedos em diversas orientações, com altitudes entre 85 metros e 110 metros.
Sua geologia é amplamente favorável ao cultivo de uvas. Grande parte dos vinhedos está situada no alto do planalto, com subsolo composto por uma base de calcário (tufa turoniana). O solo é formato por elementos argilosos-siliciosos dos períodos Senoniano, Eoceno e Mio-Plioceno, além de depósitos argilosos quaternários, de origem eólica. Eles podem ser divididos em dois tipos: Aubuis e Perruches. O primeiro fica mais próximo ao rio, dando origens a vinhos mais suaves. Já o segundo mostra uma camada mais espessa de argila com sílex, resultando em vinhos mais complexos e mais longevos.
O clima pode ser descrito como parcialmente oceânico, porém com significativa influência continental. O Loire atua como uma espécie de regulador térmico, bem como os vales que drenam o ar frio das encostas. Os verões não são tão quentes, porém com algumas ondas de calor por ano, garantindo boa maturação das uvas. A precipitação é de cerca de 680 milímetros por ano.
Diversos estilos de vinhos
O estilo dos vinhos de Vouvray varia bastante, indo do seco ao muito doce, do tranquilo ao espumante. Mesmo seus vinhos secos (que são engarrafados como Sec), porém, mostram uma percepção de dulçor mais marcante que outras regiões do Loire. Isso se deve ao terroir e à próprias regras da denominação de origem.
O limite de açúcar residual máximo recomendado pela União Europeia para vinhos secos é de 4 gramas por litro. Já em Vouvray, o máximo é o dobro disso, 8 gramas por litro. As categorias, de acordo com o teor de açúcar residual, são Sec (até 8g/l), Demi-Sec (até 12 ou 18 g/l, dependendo do nível medido de acidez), Moelleux (até 45 g/l) e Doux (acima de 45 hg/l).
Já os espumantes, que devem ser elaborados pelo método tradicional e passar ao menos 12 meses sur lattes, são divididos em sete categorias. Os Brut Nature são os mais secos (0-3 g/), seguidos por Extra Brut (até 6 g/l), Brut (limite de 12 g/l), Extra Sec (até 17 g/l), Sec (até 32 g/l), Demi-Sec (máximo de 50 g/l) e Doux (acima de 50 gramas por litro de açúcar).
Principais produtores
Vouvray, sendo uma região com muita tradição na elaboração de vinhos, conta com uma grande quantidade de produtores de excelente qualidade. Dentre eles, merece atenção especial a Domaine Huet. Além de ser uma das mais antigas, é possivelmente a mais conhecida. Ela construiu sua reputação sobretudo pelos vinhos moelleux, mas também exemplifica muito bem os diversos terroirs de Vouvray em três cuvées distintas: Le Haut Lie, Le Bourg e Le Mont.
Dentre os produtores de alto padrão de Vouvray, vale a pena destacar também François Pinon, Domaine du Clos Naudin, Vincent Carême, Domaine Champalou, Domaine Michel Autran, Domaine des Aubuisières, Domaine Sébastien Brunet, Domaine du Clos des Aumônes, Alexandre Giquel, Domaine de la Fontainerie, Domaine Perrault-Jadaud e Clos de la Meslerie.
Fontes: Loire Master Level Study Manual, Wine Scholar Guild; The Wine Doctor; Cahier des Charges de L’appellation d’origine Vouvray; Loire Valley Wine Economic Report, Vins de Loire – appelation Vouvray; The Loire 2022 Wines and Top Vineyards, Benjamin Levin MW
Imagem: Vins du Val de Loire, Creator: BURET Laurie-Anne
Mapas: Vins du Val de Loire
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