A ascensão da Inglaterra como produtora de vinho de qualidade

O Reino Unido sempre desempenhou um papel importante no cenário vinícola mundial. Porém, sempre como mercado consumidor. O antigo império britânico, além de ser absorver uma parte importante do vinho produzido no mundo, era também o destino dos rótulos de mais alta gama. Além disso, a sede dos “súditos da Sua Majestade” fez de algumas de suas colônias, como a Nova Zelândia, Austrália e África do Sul, sem esquecer os Estados Unidos, produtores importantes.

Recentemente, no entanto, o cenário da produção de vinhos no mundo foi surpreendido pela ascensão da Inglaterra como um produtor de vinho de qualidade.

2.000 anos de vitivinicultura

Roma desembarcou território que hoje conhecemos como Reino Unido no ano de 54 d.C., quando Julio Cesar era o Imperador. Como é sabido, era prática dos romanos cultivarem vinhedos para produção de vinho nos territórios ocupados. Mas há muita pouca evidência que foram bem-sucedidos nas Ilhas Britânicas. Nos séculos seguintes há registros de pequenas produções na costa sul

Em 1066 os normandos conquistaram o território hoje ocupado pelo Reino Unido. Oriundos de uma região com grande histórico de produção vinícola, ao deserbarcarem trouxeram junto religiosos que deram impulso à produção local. Em 1086, o Domesday Book (uma espécie de censo da época) registrou 42 vinhedos por lá, sendo três deles associados a produção de vinho e 12 vinhedos anexos a monastérios.

No entanto, em 1536, quando Henrique VIII dissolveu os monastérios, a pouca produção de vinhos se perdeu. Em paralelo, as importações de vinhos, especialmente de Portugal, Espanha e França, passaram a suprir o mercado com produtos de melhor qualidade e preços atraentes.

Foco em pesquisa e consumo

Apesar de não ter se tornado um produtor importante, o Reino Unido sempre se destacou no estudo e pesquisa de vinhos. Em 1630, Sir Kenelm Digby desenvolveu uma garrafa de vidro resistente que revolucionou o transporte e armazenamento do vinho. Em 1660 ocorreu a fundação da Royal Society of Wine, responsável por uma série de estudos importantes sobre o tema.

Mas a geografia não ajudava. O clima não se mostrava adequado ao amadurecimento das uvas. Ainda assim havia algumas tentativas, geralmente com resultados insatisfatórios. Stephen Shelton MW, talvez a maior referência em vinhos ingleses, em seu livro Wine Growing in Great Britain, 2nd edition, apresenta o caso do Castle Coch, que segundo ele foi a última produtor de vinhos na região antes do renascimento da era moderna, que iremos comentar a seguir. No livro ele conta, que esse produtor plantava Gamay e produzia um vinho adocicado e fortificado “a la Jerez” (vide abaixo). Não parece ter sido um vinho que tenha deixado boas memórias.

Longa tradição?

O renascimento do vinho inglês

Ainda segundo Stephen Sheldon MW, o vinho moderno inglês, que deu origem aos vinhos de qualidade disponíveis hoje no mercado, teve início em 1946, quando Ray Brock iniciou uma longa e ambiciosa pesquisa com 600 variedades (vinífera e híbridas). Brock publicou diversos livros com o resultado de suas pesquisas.

Livros de Ray Brock, pioneiro da viticultura inglesa moderna

O primeiro vinhedo comercial da era moderna no Reino Unido foi plantado em 1952 pelo General Sir Guy Salisbury Jones, em Hampshire. A área era de um acre (0,4 ha), com três variedades, todas elas híbridas, plantadas foram Seyval Blanc, Aurora e Soleil Blanc. O lançamento do primeiro vinho foi em 1955.

A viticultura na Inglaterra hoje

The Wines of Great Britain, Stephen Sheldon, 2021

Até 2013, o crescimento da área plantada na Inglaterra foi modesto e ganhou tração a partir de então. Na edição de setembro de 2023 da Decanter Magazine, dados compilados por Chris Mercer e Juliet Sheppard mostram uma grande aceleração nos últimos cinco anos. Já em 2022 foi computado um total de 3.928 hectares, um crescimento de 74% nos vinhedos no período.

Em termos de variedades cultivadas, o quadro comparativo entre 1990 e 2018 demonstra muito bem a evolução do perfil do vinho inglês. Em 1990, vinhos produzidos com as uvas alemãs lideravam a área plantada. Num fenômeno similar ao que ocorria no Brasil na mesma ocasião, a Müler-Thurgau (aquela dos famosos vinhos alemães de garrafa azul) dominavam a cena. Já em 2018, uvas usadas na produção de espumante, como a Chardonnay e Pinot Noir dominam mais da metade da produção.

As uvas mais plantadas na Grã-Bretanha

Os aliados da viticultura inglesa

A formação geológica do sul da Inglaterra é similar a de regiões vinícolas nobres, como Champagne e Chablis. Mas o clima frio sempre se constituiu numa barreira para o adequado amadurecimento das uvas. O gráfico abaixo mostra claramente uma tendência de aumento na temperatura anual média desde meados do século passado. E, junto com isso, a temperatura média noturna também vem aumentando.

A consequência dessa mudança climática foi a transformação de territórios incapazes de garantir a adequada maturação fenólica das uvas, para territórios com condições favoráveis.  Um raro exemplo em que o aquecimento global virou uma boa notícia

Temperaturas crescentes

Não é à toa que variedades como a Müller-Thurgau e Servay Blanc, que tipicamente produzem vinhos com baixo teor alcoólico, 6-7,5% abv) reinavam há 30 anos atrás. Hoje foram ultrapassadas pela Chardonnay e Pinot Noir, que produzem vinhos na região com teor alcoólico que vai de 7-12,5% abv. Esse patamar alcoólico observado na Chardonnay e Pinot Noir é visto como baixo para a produção de vinhos tranquilos, mas muito próximos da faixa ideal para os espumantes de boa qualidade.

E levando em conta que o Reino Unido, a Inglaterra em especial, é um mercado enorme para espumantes de qualidades, os ingredientes para o sucesso estavam postos à mesa.

Resultados recentes impressionantes

Nyetimber, um dos produtores pioneiros no sul da Inglaterra, fez parte de um grupo que iniciou a cultivar as variedades usadas em Champagne na segunda metade da década de 1980. Em 1997 lançou o seu primeiro rótulo: o 1992 Première Cuvée Blancs de Blancs. O vinho recebeu o IWSC Gold Medal e o English Wine Trophy, inaugurando uma série de premiações de espumantes ingleses que cresce a cada dia.

O Sul concentra a região mais nobre para a produção de uvas na Inglaterra. Interessante observar que já existe uma bela estrutura e enoturismo na área, que já é capaz de impressionar os enófilos mais exigentes. Visitei a área recentemente, uma visita rápida num “bate e volta” saindo de trem de Londres. Mas essa coluna já está ficando muito longa e esse tema fica para uma próxima.

Os vinhedos

O que podemos esperar dos vinhos produzidos na Inglaterra

Provei uma pequena amostra, em bares de vinho e visita a dois produtores. Seria muita pretensão “cravar” aqui conclusões sobre o tema. Ao contrário disso, entendam as observações abaixo como meras e despretensiosas “primeiras impressões”. Definitivamente podemos esperar espumantes de qualidade, que, talvez, mereçam comparação com os Champagnes mais simples. Os poucos brancos que provei, produzidos com a Chardonnay, foram apenas medianos. Já os tintos, a base de Pinot Noir, decepcionaram, mostrando acidez elevada, pouco corpo e uma fruta azeda.

Quanto aos espumantes, devemos esperar quantidades limitadas e, portanto, preços elevados. No varejo os espumantes ingleses já se posicionam na faixa dos Champagnes de entrada. E é compreensível, pois com a alta demanda de consumidores locais o produtor enfrenta dificuldade de formar reservas técnicas, limitando desde já a oferta futura.

No Brasil os espumantes ingleses são ainda raridades. E é difícil acreditar que um dia teremos oferta abundante por aqui. Pelo preço e pela “sede” dos consumidores ingleses.

Renato Nahas é um grande apreciador de vinhos que adora se aprofundar no tema. Concluiu as certificações de Bourgogne Master Level da WSG, e também de Bordeaux ML.  É formador homologado pelo Consejo Regulador de Jerez e Italian Wine Specialist – IWS e Spanish Wine Specialist – SWS.. Sommelier formado pela ABS-SP, possui também as seguintes certificações: WSET3, FWS e CWS, este último pela Society Wine Educators.

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Foto da capa: Renato Nahas, arquivo pessoal

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