A busca de uvas resistentes às mudanças climáticas

O número de variedade de uvas viníferas é incerto. Uma rápida consulta na literatura especializada indica existirem cerca de 12.500 no total. Ao longo do tempo, e pelos mais diferentes motivos, as regiões produtoras selecionaram algumas delas para cultivarem, deixando outras de lado. Hoje há aproximadamente 2.000 variedades, como a Merlot, Riesling e Chardonnay dentre tantas outras, sendo utilizadas na produção do vinho em escala comercial.

A Borgonha é um bom exemplo. Apesar de ter sido o berço de uma série de variedades, seus viticultores decidiram concentrar a produção de seus grandes vinhos em apenas duas castas: a Pinot Noir para os tintos e a Chardonnay para os brancos. A Melon de Bourgogne, também conhecida como Muscadet “nasceu” na região, mas foi deixada de lado e hoje é mais conhecida pelos vinhos produzidos na parte oeste do Vale do Loire. Não fosse essa migração, talvez hoje a Muscadet faria parte da lista de variedades esquecidas

Mas agora, com os efeitos mudanças climáticas afetando cada vez mais o cultivo de uvas, os viticultores voltam suas atenções para esse plantel de variedades esquecidas em busca de alternativas para enfrentar o problema.

A jornada de Miguel Torres para recuperar uvas esquecidas

Na década de 1980 circulou um anúncio nos jornais locais da Catalunha dizendo algo do tipo: “se você sabe onde encontrar variedade de uvas que não são regularmente usadas na produção de vinhos, por favor entre em contato”.

Naquele momento, que ainda se falava pouco sobre as mudanças do clima, o que Miguel Torres, membro do clã que empresta o nome para a célebre vinícola catalã Família Torres, buscava era recuperar a herança de castas esquecidas ao longo do tempo. Desde então, os laboratórios da Bodega Família Torres passaram a colecionar uma série de variedades viníferas, muitas delas não utilizadas na produção comercial de vinhos.

Antigas variedades de uva vinífera colecionadas no laboratório da Bodega Família Torres – Foto do The Guardian edição de 28/02/2023

Durante o processo de observação dessas “uvas esquecidas”, muitas delas “ancestrais” de muitas das utilizadas atualmente, a vinícola identificou algumas capazes de conviver bem com temperaturas mais altas e uma luz se acendeu.

Segundo Miguel Torres, membro da quarta geração da família e hoje a frente da vinícola, em reportagem do The Guardian de fevereiro de 2023, o que se buscava era apenas recuperar a herança perdida. E nesse processo de busca, duas variedades que estavam praticamente extintas voltaram a ser vinificadas, a Forcada e a Pinene. E não é por coincidência que ambas se adaptarem bem ao clima mais quente.

Já na California a variedade Mourtaou, originada do Sudoeste da França, e que praticamente estava esquecida na produção de vinhos comerciais, foi recuperada. Com uma característica de produzir vinhos com um caráter apimentado, ela demanda um longo processo de maturação e se beneficia de temperaturas mais elevadas.

Não se trata apenas de se adaptar ao aumento da temperatura

Infelizmente, as mudanças climáticas não se limitam ao aumento da temperatura. Eventos extremos, como fortes chuvas concentradas num curto período e fora do que seria a janela de tempo esperada, vem acontecendo com mais frequência.

É o caso de Bordeaux, que recentemente autorizou de seis novas variedades de uvas. Por ora essa autorização se restringe aos vinhos da AOC regional. A ideia por trás dessa medida é testar a incorporação de uvas resistentes às doenças fúngicas, um problema que vem sendo agravado pela maior quantidade chuva após o processo de floração na videira.

Uma dessas variedades aprovadas em Bordeaux foi a Castets, originária do sul da França, e que estava praticamente desaparecida. Ela demonstrou resistência acima da média contra as infecções causadas por fungos. Por conta disso, demanda menos tratamento, e menor uso de produtos químicos, viabilizando práticas mais sustentáveis de cultivo.

Por que algumas uvas foram abandonadas ao longo do tempo

Não há um único motivo para explicar o abandono de milhares de variedades de uvas viníferas ao longo do tempo. Mas certamente a filoxera, a doença das videiras provocadas por um pulgão, e que afetou os vinhos da Europa na segunda metade do século XIX, desempenhou um papel importante.

Essa doença forçou os viticultores europeus a replantarem praticamente todos os seus vinhedos. E abriu espaço para que as variedades mais produtivas, ou que produziam os vinhos considerados melhores, ou de maior apelo comercial, fossem escolhidas. E nesse processo muitas castas foram simplesmente deixadas de lado.

O rigoroso inverno de 1956, ocorrido no sul da França, destruiu vinhedos numa vasta área, do Rhône a Bordeaux. Essa é uma das razões para o sul da França abrir mão de muitas castas esquecidas. Ao replantar, os viticultores optaram por aquelas que sofreram menos com a intempérie. Como curiosidade, vale registrar que, a partir daí, a Merlot ganhou relevância em Bordeaux e o cultivo da Malbec foi drasticamente reduzido na região.

Novos tempos, novos estilos de vinho e novas áreas de produção

No século passado, os produtores de vinhos de algumas regiões europeias lutavam para seus vinhos conseguirem atingir um patamar razoável de álcool. Em regiões como a Borgonha, raramente os vinhos superavam os 14% abv.

Isso tudo mudou. Não é à toa que nas áreas mais frias da Borgonha o aquecimento global é ironicamente tratado como un bon problèm. E não é à toa que a região do sul da Inglaterra, antes considerada muito fria para o cultivo de uvas viníferas apesar de possuir um solo privilegiado, ser considerada hoje uma região viável para a viticultura de qualidade.

A busca por variedades que estavam extintas, ou abandonadas, insere-se no contexto que as mudanças do clima afetam toda a vida humana. E a produção de vinho não poderia ficar de fora desse movimento.

Renato Nahas é um grande apreciador de vinhos que adora se aprofundar no tema. Concluiu as certificações de Bourgogne Master Level da WSG, e também de Bordeaux ML.  É formador homologado pelo Consejo Regulador de Jerez e Italian Wine Specialist – IWS e Spanish Wine Specialist – SWS.. Sommelier formado pela ABS-SP, possui também as seguintes certificações: WSET3, FWS e CWS, este último pela Society Wine Educators.

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Foto da capa: Renato Nahas, arquivo pessoal

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