Aligoté na Borgonha: passado, presente e futuro

Chardonnay e Pinot Noir são as uvas mais plantadas na Borgonha, com quase 90% da área de vinhedos. Presentes em diversos terroirs, respondem por quase a totalidade dos melhores climats da região, com seus vinhos disputando espaço nas melhores adegas do mundo. Porém, existem outras uvas plantadas na Borgonha e, dentre elas, o principal destaque fica a com a Aligoté.

Considerando dados de 2022, a Aligoté representava cerca de 6,5% dos vinhedos da região, divididos de forma heterogênea nas diversas sub-regiões da Borgonha. Por exemplo, na Côte d’Or sua participação era muito pequena, até por conta da regulamentação. Com exceção da denominação de origem Bouzeron, o seu uso não é permitido para vinhos classificados como Village. Ela está presente em somente em um vinhedo Premier Cru, por conta de parcelas de vinhas velhas preservadas pela Domaine Ponsot em Morey-Saint-Denis.

Deste modo, excluindo estas exceções, a Aligoté é plantada em vinhedos de menor qualidade, ao menos dentro da escala de avaliação da Borgonha. Ela conta com uma denominação de origem própria, a Bourgogne Aligoté AOC, uma apelação regional. Mas por que este preconceito? Será que é uma variedade inferior?  Ou seus vinhos não alcançam maior projeção devido ao fato de não estar plantada nos melhores vinhedos?

Histórico

Antes de mais nada, é importante analisar seu histórico. Ao contrário da situação atual, no passado a Aligoté tinha uma participação muito maior na Borgonha, inclusive nos vinhedos considerados superiores, incluindo Premier Cru e Grand Cru. Jasper Morris, um dos maiores especialistas em vinhos da Borgonha, deixa isso claro. Por exemplo, no século XIX a Aligoté respondia por extensas áreas plantadas no Grand Cru Corton-Charlemagne, considerado com um dos melhores de toda a Borgonha para uvas brancas.

Embora seja difícil analisar tendências antes disso, por conta da falta de identificação das variedades usadas historicamente na Borgonha, diversas referências parecem mostrar um peso maior para a Aligoté no passado. Esta “irmã” da Chardonnay (é também resultado do cruzamento natural entre Pinot Noir e Gouais Blanc) vem sendo plantada na Borgonha desde a Idade Média, inclusive pelas ordens religiosas, que historicamente dividiram os melhores vinhedos com a nobreza.

Foi somente a partir da filoxera que a área plantada caiu de forma significativa, perdendo espaço para a Chardonnay. Felizmente, esta tendência de queda se desacelerou de forma significativa nos últimos anos, até por conta da percepção em relação à qualidade desta variedade. Em 2018, a área sob produção da Bourgogne Aligoté AOC era de 1.577 hectares, contra 1.591 hectares dez anos antes.

O que explica a perda de espaço?

Mas por que a Aligoté viu sua participação nos vinhedos cair de forma tão acentuada na Borgonha? Existem quatro explicações principais. Em primeiro lugar, muitos viticultores, mesmo reconhecendo sua alta qualidade, a consideraram com uma variedade de cultivo mais difícil que a Chardonnay. A questão de percepção de qualidade seria o segundo motivo, com a Aligoté sendo vista como “inferior” à Chardonnay. Além disso, existe a explicação derivada da percepção de que, por conta de seu perfil fisiológico, no passado suas uvas raramente atingiam o nível de maturação ideal, dando origem a vinhos de acidez muito elevada.

A quarta razão seria a introdução do sistema de denominações de origem na França em meados da década de 1930 e que, obviamente, pode estar ligada às três motivações anteriores. A imposição de que os melhores vinhedos somente poderiam ser plantados com Pinot Noir ou Chardonnay empurrou a Aligoté para vinhedos inferiores.

Círculo vicioso

A explicação mais racional talvez seja uma combinação dos vários fatores acima. Relegada a vinhedos de menor qualidade e longe dos Premiers Crus e Grands Crus, onde as regras de cultivo e produção são mais estritas, a Aligoté entrou em um círculo vicioso. Se nos melhores vinhedos da Borgonha as regras de rendimentos máximos são mais rígidas, para garantir a qualidade dos vinhos, a Aligoté tomou outro rumo.

Com poucas exceções, ela acabou restrita a vinhedos onde a quantidade produzida era a variável principal, em detrimento da qualidade. E, como todas as variedades altamente produtivas, sua produção cresceu, mas com perda de qualidade. Por muito tempo, ela foi vista como uma uva simples e de alta acidez, mais adequada para elaborar espumantes ou para ser usada em drinques, como o Kir, onde é misturada com creme de cassis.

Esta reputação acabou levando a novas perdas nas áreas cultivadas, principalmente as melhores, onde foi substituída pela Chardonnay. Felizmente, porém, os esforços de diversos produtores mostraram que este ciclo podia ser interrompido. Aligotés de alta qualidade ganharam espaço junto aos apreciadores de vinhos da Borgonha, abrindo um novo capítulo na história desta uva.

Um novo cenário?

Há males que vêm para bem. Muitas das desvantagens do passado são agora aliadas da Aligoté. Na comparação com a Chardonnay, ela apresenta maior acidez já nos vinhedos, além de potencial de teor alcóolico mais baixo. Ela é também mais resistente à seca e seus grãos mostram muito frescor mesmo em climas ou safras mais quentes.

Se tudo isso era um problema na Borgonha do passado, o aquecimento global está mudando completamente o cenário. As características acima mostram que a Aligoté pode se adaptar muito bem à novas condições climáticas da região. Isso deve levar a uma gradual recuperação do espaço perdido. Já existem, inclusive, estudos analisando a possibilidade de incluir a Aligoté nos vinhos brancos de nível Village. Assim, existiria a opção de, ao invés de somente monovarietais, os produtores poderiam optar por cortes com as duas uvas “irmãs”, tendo a Chardonnay como majoritária.

Transparência de terroir

Para muitos produtores, a Aligoté mostra também outras vantagens. Sylvain Pataille, um dos mais conceituados vinhateiros no norte da Côte d’Or, acredita que esta uva mereça muito mais espaço na Borgonha. Para ele, que produz cinco cuvées distintas desta variedade, a “Aligoté possivelmente mostra o terroir de forma mais transparente que a Chardonnay. Ela pode mostrar muita variação dependendo de onde e como é cultivada”.

Como exemplos, cita a grande variação nos vinhos dependendo do perfil de solo. Mesmo dentro da Côte d’Or e da Côte Chalonnaise, onde a maior mudança de solos fica na quantidade de calcário, as diferenças são significativas. Já no Mâconnais, onde existem também solos de base granítica, as variações são ainda maiores.  

Escolhendo um Aligoté

Mas como escolher um Aligoté? Três variáveis são importantes. Em primeiro lugar, há pouca dúvida de que os melhores vinhos desta uva são aqueles nos quais houve uma contenção mais significativa do rendimento dos vinhedos. Por exemplo, o rendimento máximo na denominação Bourgogne Aligoté é de 75 hectolitros por hectare e na Bouzeron AOC, de 65 hl/ha. Opte por vinhos onde esteja clara a opção do produtor por rendimentos menores.

Uma segunda variável importante é qual o biotipo de Aligoté. Boa parte dos vinhedos desta variedade está plantada com o biotipo Aligoté Vert, mas boa parte dos produtores deixa claro que existe uma melhor opção. Para eles, os vinhos mais interessantes seriam aqueles elaborados com a Aligoté Dorée, um biotipo que mostra uvas de menor tamanho, coloração dourada ou mesmo rosada, rendimentos menores e maior presença de componentes aromáticos.

Por fim, o terceiro fator vale para todas as uvas, não somente a Aligoté. Escolha vinhos de melhores produtores, aqueles que melhor respeitam o terroir e trabalham de forma mais artesanal. Fatores como opção por agricultura orgânica ou biodinâmica, colheita manual, uso de leveduras indígenas e não utilização de diversos aditivos, além do talento do vinhateiro, podem fazer a diferença na qualidade dos vinhos.

Sub-regiões de destaque

A Aligoté está presente em praticamente toda a Borgonha, porém com concentração maior em algumas sub-regiões. Na região das Hautes-Côtes ela corresponde a cerca de 15,3% da área plantada, pouco acima da Côte Chalonnaise, onde responde por cerca de 15% dos vinhedos. Vale lembrar que é nesta sub-região que fica localizada a denominação de origem Bouzeron.

Também no norte da Borgonha a Aligoté tem uma participação expressiva. Na sub-região do Grand Auxerrois, que inclui Chablis, ela tem uma participação de cerca de 14% da área de vinhedos, o que a faz a segunda uva mais cultivada, somente atrás da Chardonnay. Vale lembrar que, além de seu uso na elaboração de vinhos tranquilos, a Aligoté é utilizada nos Crémants de Bourgogne, como variedade secundária (média de 5% do corte).

Em termos de reputação, duas localidades ganham destaque. Em Bouzeron são 160 hectares de vinhedos classificados como Village, com grande proporção de vinhas velhas, regras mais estritas e maior participação da Aligoté Dorée. Já o único Aligoté Premier Cru é o da Domaine Ponsot, elaborado a partir de parcelas de vinhas velhas (mais de 110 anos) no climat Les Monts Luisants, em Morey-Saint-Denis

Janela de consumo e produtores selecionados

Apesar da percepção de muita gente que os Aligotés são de rápido consumo, no máximo dois anos após sua safra, há quem discorde. Para a Domaine de Villaine, mais tradicional produtor de Bouzeron e de propriedade de Aubert de Villaine, co-proprietário da Domaine de la Romanée Conti, a janela de consumo ideal é de até cinco anos. Já Sylvain Pataille e Rose-Marie Ponsot relatam ter provado Aligotés com décadas de adega e altíssima qualidade.

Estes são apenas três dos produtores da Borgonha fortemente envolvidos com esta uva. Eles fazem parte de um grupo de cerca de 65 produtores, chamado Les Aligoteurs, que se reúnem e trocam informações para garantir a qualidade de seus vinhos feitos a partir da Aligoté. Dentre eles, há nomes como Bruno Clair, Michel Lafarge, Benoît Ente, Pierre Morey, Marquis d’Angerville, Thibault-Liger-Belair, Dureuil Janthial, Domaine Fournier, François Mikulski e Domaine de la Soufrandiere.

A Aligoté também faz parte das uvas cultivadas por outros icônicos produtores da região, com destaque para a Domaine d’Auvenay, possivelmente o mais caro Aligoté do mundo, vendido em lojas online a valores acima de € 4 mil a garrafa. Outros nomes importantes são Charles Lachaux, Coche-Dury, Jean Marc Roulot, Arnaud Ente e Domaine Ramonet.

Fontes: Vins de Bourgogne; Entrevista com Jasper Morris; Sylvain Pataille; Exploring Aligoté – Throghout Bougogne and Beyond, Robin Kick MW

Imagem: Foundation Plants Services Grapes, UC Davis

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