Bourgueil: tradição e excelência com a Cabernet Franc

Quem aprecia Cabernet Franc encontra no Loire uma rara combinação entre qualidade e quantidade. Esta região fica somente atrás de Bordeaux em termos de produção, mas não há como negar que alguns dos melhores vinhos do mundo elaborados a partir desta variedade têm origem nesta área. Ao contrário do Bordeaux, porém, onde geralmente esta uva faz parte de cortes, existem diversas denominações de origem no Loire onde a Cabernet Franc reina soberana.

Dentre elas, Bourgueil é uma das mais importantes. Situada na margem direita do Loire, esta denominação de origem é o portão de entrada dos vinhedos da Touraine, fazendo fronteira com a sub-região de Saumur. É uma área que oferece as condições ideais para o cultivo da Cabernet Franc. Combina tradição na viticultura, solos favoráveis, alta proporção de vinhedos de face sul, proteção dos ventos frios originários do norte e influência oceânica, que chega através do Loire.

Longa história  

Embora haja relatos de vinicultura na região já na época romana, o grande impulso, assim como em outras áreas da França, veio com a chegada das ordens religiosas. Um dos marcos foi a fundação da Abadia de Bourgueil, em 990, que rapidamente começou a dar mais atenção à elaboração de vinhos. Em 1189, o abade Baudry descreveu os encantos de seu mosteiro e seus vinhos. Ao longo dos séculos, as videiras ultrapassaram as muralhas do Clos de l’Abbaye, rumo às encostas e terraços do Loire.

Não há evidências, porém, do momento exato quando a Cabernet Franc começou a dominar os vinhedos da região. Chamada localmente de Breton, há quem aponte o século XII, outros acreditam que teria ocorrido somente 350 anos depois. De qualquer forma, a região passou a ser um importante exportador de vinhos finos, beneficiada pela rápida expansão do comércio com os holandeses a partir do século XVII.

As restrições em relação ao comércio com a Holanda e a chegada da filoxera tiveram forte impacto na região. No começo do século XX, boa parte do vinho era para consumo local. A recuperação foi gradual, e, com a criação da denominação Bourgueil em 1937, a região voltou a prosperar, tendo a Cabernet Franc como variedade quase absoluta.

A denominação de origem

Criada em 31 de jullho de 1937, em paralelo com a denominação vizinha de Saint-Nicolas-de-Borgueil, a Bourgueil AOC hoje conta com cerca de 1.240 hectares de vinhedos, inteiramente dedicados às uvas tintas. Embora exista a permissão para utilização de até 10% de Cabernet Sauvignon, na prática, a Cabernet Franc reina solitária. Cerca de 96% dos vinhos são tintos, com os demais elaborados como rosés.

A localização da Bourgueil AOC

A produção total em 2019 foi de 41,4 mil hectolitros, o equivalente a 5,5 milhões de garrafas ao ano. Isso a coloca como a quarta maior denominação de origem produtora de vinhos tintos do Loire, somente atrás de Saumur-Champigny, Chinon e Saint-Nicolas-de-Borgueil. Seu território se estende por oito communes diferentes, todas na margem direita do Loire e imediatamente a norte de Chinon, que fica na outra margem do rio.

Geografia e terroir

Esta região mostra características que a tornam bastante atrativa para a Cabernet Franc, que tem em Bourgueil o seu limite norte em termos de plantio de grande escala. Sua área geográfica é delimitada, a norte, pela floresta de Gâtine, que retém os vinhos frios do norte. Ao sul, seu limite é o Loire, que permite que o clima apresente características semi-oceânicas (mais quente e com umidade constante), adequadas para esta variedade

Do ponto de vista geológico, porém, não é uma região homogênea. Cerca de um terço da área é uma encosta de orientação sul, coberta por florestas. Os dois terços restantes combinam encostas e terraços, além de uma planície aluvial próxima ao rio. E esta configuração permite a existência de diferentes tipos de solos. Os solos dos vinhedos mais altos são ricos em calcários do período Turoniano, chamados de tuffeau amarelo. Logo abaixo vêm solos que também mostram alta proporção de calcário, mas com presença de mica e calcário branco (tuffeau blanc).

Já os solos argilosos-siliciosos da parte baixa da encosta se desenvolveram no período Senoniano. Por fim, no sopé das encostas, os solos aluviais, chamados de Les Varennes, mostram características arenosas, com mais ou menos cascalho, dependendo da área. Eles são resultado de terraços aluviais criados pelo curso do Loire nos últimos milênios. Estas características de solo desempenham um papel muito importante para os vinhos da região, como veremos a seguir.

Os vinhos de Bourgueil

Os produtores de Bourgueil costumam dividir seus vinhos em dois grupos diferentes: aqueles de solos aluviais e os de solos de tuffeau. Nos vilarejos mais próximos ao Loire, os solos são aluviais e arenosos, resultando em vinhos mais frutados (com aromas destacados de framboesa), leves e recomendados para consumo mais rápido. São chamados localmente de vinhos de primavera. Também os rosés são geralmente elaborados a partir deste perfil de solo.

Já naqueles vinhedos mais distante do rio, ao norte, predominam os solos de tuffeau, gerando vinhos mais estruturados e intensos, com grande poder de evolução. Estes vinhos são, geralmente, os mais disputados de Bourgueil. Apesar do maior corpo e profundidade, mostram taninos sedosos, com aromas destacados de frutas negras na juventude. Porém, ganham a companhia de notas terrosas e de especiarias com o passar do tempo. Não são poucos os exemplares que atingem seu pico entre 10 a 20 anos de adega.

Aproximadamente 60% dos vinhedos de Bourgueil contam com solos aluviais-arenosos, com o restante mostrando maior concentração de tuffeau. Em Restigné, vilarejo de maior produção dentro desta denominação de origem, os solos são intermediários, com pequena vantagem para o tuffeau. Desta forma, na hora de escolher um vinho de Bourgueil, é fundamental identificar sua origem, pois suas características mudam de forma significativa, dependendo do tipo de solo onde os vinhedos foram plantados.

Principais produtores

Bourgueil talvez não tenha um produtor tão emblemático que represente esta denominação de origem como outras regiões do Loire, como, por exemplo, a Domaine Huet em Vouvray ou Clos de Rougeard em Saumur-Champigny. Historicamente, Domaine de la Chevalerie e Yannick Amirault desempenharam (e ainda desempenham) um papel importante, mas hoje a primazia é dividida entre vários produtores.

Dentre eles, vale a pena mencionar alguns nomes já conhecidos no Brasil, como Catherine & Pierre Breton e Domaine du Bel Air. Outros produtores de destaque são Aurélien Revillot, Château de Minière, Domaine de la Butte, Domaine de la Lande, Domaine des Ouches, Pierre Jacques Druet, Laurent Herlin, Domaine Guion e Lamé Delisle Boucard.

Fontes: Loire Master Level Study Manual, Wine Scholar Guild; The Wine Doctor; Cahier des Charges de L’appellation d’origine Bourgueil; Loire Valley Wine Economic Report, Vins de Loire

Imagem: Duch.seb, CC BY-SA 3.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0, via Wikimedia Commons

Mapa: Vins du Val de Loire

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