Crus Communaux: múltiplas expressões dos melhores terroirs de Muscadet

A maior valorização de terroir vem ganhando espaço no mundo do vinho. Como já ocorre há décadas na Borgonha e Alsácia (somente para mencionar dois exemplos na França), existe uma clara tendência de identificar, segmentar e premiar os melhores vinhedos. E os produtores da denominação de origem Muscadet Sèvre et Maine seguiram este caminho.

A aprovação dos primeiros Crus Communaux em 2011 foi um marco importante nesta caminhada. Ela colocou em evidência alguns dos melhores terroirs desta denominação de origem, famosa pelos seus vinhos elaborados a partir da Melon de Bourgogne. Porém, isso foi fruto de um longo processo e que segue ainda longe do fim. E isso se justifica, sendo o Loire é uma das áreas mais dinâmicas do vinho francês, refletindo a enorme diversidade de seu terroir.

O que são Crus Communaux?

Antes de analisar esta trajetória, é fundamental entender o conceito dos Crus Communaux. Este não é um sistema de classificação de vinhedos específicos e bem delineados, como existente, por exemplo, na Borgonha. Neste caso, climats específicos e, geralmente, de área menor, recebem classificações que podem atingir Premier ou Grand Cru, o topo da pirâmide. Já os Crus Communaux também são delineados, porém são muito mais extensos.

Ao contrário de uma classificação centralizada, no caso dos Crus Communaux cabe ao vinhateiro interessado em produzir um vinho Cru Communale (no singular) examinar as parcelas que possui dentro da área correspondente. Ele determina se o vinhedo é elegível, e ao adotar os critérios mínimos, vai buscar junto as autoridades o reconhecimento como Cru Communale.

Atualmente, os Crus Comunnaux não são denominações de origem propriamente ditas. Todos aqueles já aprovados (sete) fazem parte da Muscadet Sèvre et Maine AOC (em azul escuro no mapa abaixo). Porém, até porque eles têm regulamento próprio definido pela associação de produtores, a expectativa é que, no futuro, cada um deles receba reconhecimento como denominação de origem independente.

Um longo processo

Definido o conceito, vale a pena entender como chegamos à situação atual. A forte crise que se abateu sobre a viticultura do Pays Nantais nas décadas de 1980/1990 acabou criando condições para uma importante ruptura. Antes dominada por négociants, a comercialização dos vinhos passou a ficar cada vez mais nas mãos dos próprios produtores. Mais do que quantidade, o foco passou a ser qualidade.

Em 1988 foi criada a comissão Vins du Vignoble Nantais, em resposta aos pedidos de vinhateiros para um sistema de crus. Um comitê consultivo especializado foi formado em 1989, mas o trabalho não começou até 1995. Foi a partir daí que ganhou impulso a proposta de segmentação dos vinhedos e definição de regras de cultivo e de elaboração dos vinhos. Por conta da burocracia das autoridades e reação contrária de outros produtores, a aprovação veio somente em 2001. Estavam criados os Crus Communaux, contemplando, nesta época, os crus de Clisson, Gorges e Le Pallet.

Após o sucesso desta iniciativa, grupos de produtores de outras regiões iniciaram os processos burocráticos em 2003. Estes esforços culminaram com a aprovação dos crus Goulaine, Château-Thébaud, Monnières-Saint-Fiacre e Mouzillon-Tilières em 2019. A perspectiva, agora, é de aprovação de dois novos crus na Muscadet Sèvre et Maine AOC (La Haye-Fouassière e Vallet), além de outro na Coteaux de la Loire AOC (Champtoceaux).

O processo e a pirâmide de classificação

O processo é longo e trabalhoso. Em primeiro lugar, o produtor identifica a parcela que deve, naturalmente, atender a todos os critérios estabelecidos. Ele deve informar o INAO antes de 1º de fevereiro durante o ano de colheita, dando tempo para o comitê que trabalha para aprovar ou recusar esses pedidos, visitar o local e fazer seus julgamentos.

Os critérios são rigorosos. Apesar de haver mais de 4.500 hectares elegíveis ao longo dos três crus aprovados em 2011, apenas 200 hectares de videiras receberam sinal verde. A classificação considera um sistema de hierarquia em forma de pirâmide, com três níveis distintos. O primeiro nível, e base da pirâmide, é a Muscadet AOC, uma denominação regional. O segundo degrau inclui as denominações sub-regionais, como Muscadet Sèvre et Maine e Muscadet Côtes de Grandlieu. Por fim, o terceiro degrau e topo da pirâmide, é o dos Crus Communaux.

Critérios mais rigorosos

Assim como a denominação Muscadet Sèvre et Maine impõe regras mais estritas que a Muscadet AOC, o mesmo ocorre com os Crus Communaux. Em todos eles, as videiras devem ter ao menos cinco anos de idade (na prática entre 30 e 40 anos). Já o rendimento máximo deve ser menor (45 hectolitros por hectare, contra 55 hl/ha em Sèvre et Maine e 65 hl/ha na Muscadet AOC). Além disso, as uvas devem ser colhidas mais maduras, regra aplicada por vários meios, como pisos mínimos para a concentração de açúcar e potencial de álcool. Por exemplo, a graduação alcóolica mínima é de 10% para Muscadet Sèvre et Maine AOC, mas de 11% para os Crus Communaux aprovados.

Algumas regras, porém, variam de acordo com cada Cru Communale, como o tempo mínimo com suas lias. Se na Muscadet AOC não há obrigação de tempo mínimo, em Sèvre et Maine o vinho deve ficar entre 6 e 12 meses. Já nos vários Crus Communaux ela pode variar entre 18 e 24 meses. Vale lembrar que estes vinhos não podem colocar a expressão Sur Lie em seus rótulos, ao contrário do que ocorre nos dois degraus mais baixos da pirâmide. E há outras regras sendo discutidas, como a obrigatoriedade de colheita manual e aragem dos vinhedos.

Abrangência

Se a denominação de origem Muscadet Sèvre et Maine tem atualmente 5.500 hectares de vinhedos, a área somada de todos os Crus Communaux que ficam dentro de sua extensão territorial fica em torno de 150 hectares, ou 2,7% do total. Por conta da regulamentação mais estrita em relação aos rendimentos, a proporção da produção é ainda menor, na faixa de 1,5%.

Embora a área e a produção sejam pequenas, o conceito envolve uma proporção muito maior de produtores. Estima-se que atualmente haja cerca de 100 produtores diferentes envolvidos como os Crus Communaux, o que representa aproximadamente 24% dos 410 produtores da denominação de origem Muscadet Sèvre et Maine.

Conhecidas as definições, história, processos, critérios e estatíticas, vale a pena analisar melhor cada um dos Crus Communaux.

Clisson

Clisson foi um dos três crus reconhecidos em 2011. É também um daqueles com maior homogeneidade de solos, com o granito aportando características especiais aos vinhos desta área. O chamado Granite de Clisson é extremamente durável, com poucas fissuras e coberto por solos arenosos, criados pelo desgaste da rocha-mãe. Estes solos aquecem rapidamente na primavera e são tipicamente bem drenados.

No total, são 26 hectares de vinhedos distribuídos por sete vilarejos distintos, todos ao sul da área de crus e com destaque para Clisson. Por conta de sua arquitetura, este vilarejo é chamado de “pequena Itália” do Pays Nantais e uma foto sua ilustra esta matéria. A área delimitada deste cru é cortada tanto pelo rio Sèvre como pelo Maine e se caracteriza por temperaturas mais altas. Seus vinhos, que devem passar um período mínimo de 24 meses com suas lias, são potentes e concentrados, com muita estrutura e potencial de guarda.

Neste cru atuam 20 produtores distintos, com destaque para Bruno Cormerais, Famille Lieubeau e Domaine de la Pépière. Outros produtores são: Château d’Amour, Les Bêtes Curieuses, Domaine Brégeon, Domaine de la Bretonnière, Domaine Chatellier, Domaine de l’Epinay, Domaine Christian Gauthier, Domaine des Cognettes, Domaine de la Colline, Domaine de la Noë, Domaine des Grands Egards, Gilles Luneau, Domaine Martin-Luneau, Vignoble Ollivier Frères, Laurent Perraud, Christian Pineau e Domaine de la Vinçonnière.

Gorges

Reconhecido em 2011, Gorges é um cru também caraterizado pelos seus solos. Mas ao invés dos granitos de Clisson, aqui predomina o gabbro, também uma rocha ígnea, mas de composição distinta. Este subsolo de origem muito antiga tem uma cobertura mais espessa nesta área, composta por sedimentos arenosos ou argila decomposta com presença de quartzo, garantindo fertilidade média a alta.

Com cerca de 24 hectares de vinhedos, este cru está situado nas elevações em torno do rio Marne e seus afluentes, cobrindo quatro vilarejos logo ao norte da parte oriental de Clisson. Seus vinhos, que levam mais tempo para evoluir e mostram muita tensão, são normalmente mantidos com suas lias por mais que os 24 meses definidos pelo regulamento. Entre os 20 produtores que atuam na área, destaque para Les Bêtes Curieuses, Alain et Philippe Blanchard, Auguste Bonhomme, Domaine Brégeon, Château du Coing de St Fiacre, Domaine de la Cornulière, Domaine Le Fay d’Homme, Domaine Martin-Luneau, Domaine de la Pépière, Vincent Rineau e La Tour Gallus.

Le Pallet

O terceiro dos crus aprovados em 2011 não mostra a homogeneidade de solos dos dois anteriores. A parte ocidental contém mais gneiss, ortogneiss e xisto micáceo; enquanto a parte oeste mostra maior concentração de gabbro. No total, são 13 hectares de vinhedos situados no coração da Muscadet Sèvre et Maine AOC, cultivados atualmente por 12 produtores distintos.

Os vinhos desta área tendem a ter potencial menor de guarda, até por conta do período mínimo com as lias (18 meses) ser inferior às demais. Ao contrário dos crus anteriores, não há uma homogeneidade de estilos. Isso leva em conta as diferenças na composição de solo deste cru, definido mais por fronteiras administrativas do que pelo seu terroir. Dentre os produtores, destaque para Vignerons Bedouet, Domaine Ménard-Gaborit e Les Vignerons du Pallet.

Château-Thébaud

Um dos crus aprovados em 2019, Château-Thébaud teve a sua área definida mais pela sua posição geográfica, na margem esquerda do rio Maine, ao norte de Clisson, do que por seu perfil de solos. Apesar de boa parte de sua área de 20 hectares de vinhedos ter como base os Granite de Château-Thébaud (granodiorite), uma parcela tem solos de gneiss.

Os vinhos deste cru, um dos menores entre todos os já estabelecidos ou propostos, têm estrutura média, mas são mais ricos, com notas frutas secas, amêndoas ou avelãs. Mostram bom potencial de evolução, com período mínimo de 24 meses em contato com suas lias. Porém, uma parte significativa passa por envelhecimento por mais tempo, entre 30 e 42 meses. Entre os produtores, destaque para Les Bêtes Curieuses, Chéreau-Carré, Famille Lieubeau e Domaine de la Pépière.

Goulaine

Se Château-Thébaud tem a menor área total entre os crus já aprovados, Goulaine fica no extremo oposto, embora parte significativa de seu terroir não seja aproveitado. Situado na região conhecida como Marais de Goulaine, a parte central desta região pantanosa não é adequada para a viticultura. Assim, a área de vinhedos, de cerca de 20 hectares, ocupa somente as áreas mais altas, nas bordas da região.

É uma área de climas mais amenos, com subsolos metamórficos de xisto micáceo e gneiss (incluindo pequenas áreas de mica, anfibolita e serpentinita), cobertos por uma mistura rasa de areia e cascalhos. A colheita começa mais cedo nesta região e é inteiramente manual (algo que os demais crus discutem atualmente como requisito). Por conta da diversidade de terroir, não há um estilo único, lembrando que o prazo mínimo de contato com a lias é de 18 meses. Os vinhos de maior destaque acabam sendo aqueles do terroir baseado nos Schistes de Goulaine. Exemplos são os vinhos da Domaine Luneau-Papin, Famille Lieubeau, Château de Briacé e Domaine Jean-Luc Viaud.

Mouzillon-Tillières

Com cerca de 18 hectares de vinhedos, a aprovação deste cru se deu em 2019 e, em termos de terroir, ele traz semelhanças como Gorges, que fica a sudoeste. O solo tem base em gabbro, chamado localmente de rubis, porém com menor presença de argila. Boa parte desta área segue o curso do rio Sanguèze e tem altitude média maior que as demais. Por conta disso, é uma das sub-regiões de colheita mais tardia.

Estas condições levam seus vinhos a ser menos acessíveis quando jovens do que os de alguns outros crus. Eles podem mostrar um estilo mais austero quando jovens e excelente potencial de guarda, lembrando que o tempo mínimo com suas lias é de 24 meses. Quando mais evoluídos, tendem a mostrar muita precisão, pureza e equilíbrio. Dentre os produtores com vinhedos na região, destaque para Michel Luneau et Fils, Domaine du Colombier, Famille Lieubeau e Domaine de la Pépière.

Monnières-Saint-Fiacre

Monnières-Saint-Fiacre, com 29 hectares de vinhedos, fecha a lista de crus aprovados em 2019. Cerca de 80% and 90% de seus solos são baseados em gneiss, de forma que é razoável vê-lo como um cru monoterroir, semelhante a Gorges e Clisson. Este cru fica na confluência dos rios Marne e Sèvres Nantaise, logo a norte de Château-Thébaud e Mouzillon-Tillières.

Seus vinhos, que ficam no mínimo 24 meses com suas lias, combinam equilíbrio, harmonia, com notas de frutas frescas, florais, e capacidade mediana de envelhecimento. Chris Kissack, um dos autores de maior prestígio cobrindo a região, define os vinhos como “uma expressão de fruta fresca combinada com um equilíbrio contido”. Dentre os mais de 15 produtores com vinhedos na região, destaque para Domaine de la Pépière, Domaine Le Fay d’Homme, Domaine de la Combe,  Vignobles Günther-Chéreau e Les Bêtes Curieuses.

Outros crus em processo de aprovação

Há mais dois crus na denominação Muscadet Sèvre et Maine em processo de aprovação: La Haye-Fouassière (18 hectares) e Vallet (22 hectares), levando o total para nove. O primeiro, bem próximo a Nantes, tem seus solos com predominância de ortogneiss, gerando vinhos de muita tensão e mineralidade. Já o segundo, situado no nordeste da denominação Muscadet Sèvre et Maine, mostra uma variação maior, com solos de xisto micáceo, granito e gabbro.

Além disso, é prevista a aprovação de um cru na denominação Muscadet Coteaux de la Loire, Champtoceaux (22 hectares), e, possivelmente, dois outros crus na denominação Muscadet Côtes de Grandlieu.

Fontes: Vins Val de Loire; Loire Master-Level Study, Wine Scholar Guild; The Wine Doctor; Muscadet Toward a Renaissance, Jo Landron; Wines and Top Vineyards – The Loire 2022, Benjamin Lewin MW; Clisson Cru de Muscadet; Vigneron du Pallet; La Haye-Fouassière Cru; Cru Communale Goulaine

Mapas: Vins Val de Loire; Vin de Nantes; Cru Communale Goulaine

Imagem: Emeline Boileau/Vins de Nantes

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