Definindo a origem da Sangiovese: uma trajetória marcada por surpresas

A Sangiovese é a uva mais plantada na Itália e, mais do que isso, representa uma das principais regiões vinícolas do país. Se o Piemonte tem a Nebbiolo e o Etna a Nerello Mascalese como uvas símbolo de sua viticultura, a Toscana tem a Sangiovese como sua variedade emblemática. Suas principais denominações de origem, como Brunello di Montalcino, Chianti Classico e Nobile de Montepulciano utilizam a Sangiovese como uva base. Deste modo, para muita gente, a Sangiovese representa a máxima expressão da tipicidade do vinho toscano.

As primeiras menções a esta variedade datam de 1600, em um livro chamado Coltivazioni Toscane, onde era citada como Sangiogheto, até hoje um de seus sinônimos. Mas muita gente foi além, acreditando que a Sangiovese tem um vínculo histórico ainda mais longo com a Toscana. Ela seria cultivada localmente já pelos etruscos, antes, portanto, do surgimento do Império Romano. Embora sem comprovação científica, esta relação entre Sangiovese e Toscana sempre foi quase simbiótica. Ao menos até que a genética entrasse em campo.

Buscando as origens

Em um país com imensa diversidade de uvas como a Itália, buscar a origem de suas principais variedades autóctones é uma tarefa complexa. Porém, ao contrário do passado, onde referências históricas e estudos ampelográficos (análise das folhas videiras) eram as principais fontes, o desenvolvimento de novas técnicas na genética facilitou muito o caminho. Se o uso de testes genéticos para definir paternidade entre humanos se tornou comum, o mesmo ocorreu com as variedades de uva.

Um estudo publicado em 2002 foi pioneiro em relação à Sangiovese. Ele mostrou que a uva mais plantada na Itália tem uma relação direta (seja como ascendente ou como descendente de primeiro grau) com a Ciliegiolo, uma variedade bastante comum na Toscana. Vale lembrar que, na ausência de uma terceira uva geneticamente relacionada e/ou de um horizonte temporal definido, não era possível desvendar se a Ciliegiolo seria “mãe” da Sangiovese, ou vice-versa.

Com a comprovação científica do parentesco genético entre ambas, começou a corrida para descobrir qual seria a terceira uva com relação genética próxima. De uma só vez, isso poderia resolver dois mistérios. Em primeiro lugar, qual o parentesco entre ambas e, ainda mais importante, ajudar a definir a árvore genealógica da Sangiovese.

O elo perdido

E onde buscar o elo perdido, a uva que poderia ajudar a decifrar as origens da Sangiovese? Uma das alternativas mais óbvias era consultar a coleção de perfis genéticos de um dos maiores especialistas do mundo no assunto, o suíço José Vouillamoz. O coautor (juntamente com Jancis Robinson) da mais respeitada obra sobre varietais no mundo é guardião de mais de 3.000 perfis genéticos de uvas, com grande presença de varietais italianos, até por trabalhos prévios seus nesta área.

Inicialmente, Vouillamoz buscou identificar combinações onde a Ciliegiolo fosse descendente da Sangiovese, mas não achou qualquer variedade que pudesse preencher a lacuna. Ao usar o raciocínio inverso, porém, quatro candidatas surgiram: as tintas Calabrese di Montenuovo e Palummina Mirabella, além das brancas Malvasia Bianca e Bombino Bianco.

Em 2004, Vouillamoz anunciou o elo perdido. Ele mesmo ficou surpreso com o resultado, o que o levou a fazer uma análise ainda mais rigorosoa, que confirmou sua pesquisa inicial. Para espanto de muitos, a Sangiovese é o resultado do cruzamento natural entre a toscana Ciliegiolo e a Calabrese di Montenuovo, que, como o nome indica, é originária da Calábria. Deste modo, a uva mais símbolo da Toscana tem origens, ao menos parciais, no sul da Itália.

Calabrese di Montenuovo?

A presença da obscura Calabrese di Montenuovo como ascendente direta da Sangiovese causou verdadeira comoção. Que uva seria esta? Quais suas origens? Curiosamente, esta variedade fazia parte do amplo catálogo de perfis genéticos de Vouillamoz por conta do trabalho de uma de suas alunas de Doutorado, a italiana Laura Constantini. Em seus trabalhos anteriores analisando as uvas da região da Campania, na Itália, ela se deparou com uma variedade única.

Em um vinhedo isolado na região da baía de Napoles, mais especificamente em uma colina ao lado do Lago d’Averno, ela identificou uma variedade diferente. Esta colina é chamada de Montenuovo, pois surgiu de uma erupção vulcânica (a região fica perto do Vesúvio), sendo cultivada pela família Strigari, originária da Calabria. Na hora de dar nome a esta uva, que não foi identificada em outras partes da Itália, a associação entre nome de local e origem dos viticultores foi a melhor alternativa.

Portanto, esta obscura variedade acabou se mostrando como a “mãe” da mais plantada variedade italiana. Embora existam pesquisas apontando outras uvas como alternativas, Vouillamoz é firme ao defender suas conclusões. Para ele, não há dúvida de que a Sangiovese tem raízes no sul da Itália, até porque duas das mais valorizadas uvas da Sicília, a Frappato e a Nerello Mascalese, são descendentes diretas dela.

Fontes: Il Sangiovese è per metà calabrese, Vouillamoz, Monaco, Costantini, Zambanini, Stefanini, Scienza, Grando (2008); Genetic Super-Sleuthing: Sangiovese, Garancha and Tempranillo, Vouillamoz, Wine Scholar Guild

Imagem: Walkerssk via Pixabay

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