A radicalização do discurso certamente faz parte também da realidade do mundo do vinho. E um dos focos diz respeito ao papel do vinho no nosso dia a dia. As recentes discussões na Europa sobre possíveis danos à saúde resultantes do consumo de bebidas alcóolicas colocaram países e indivíduos em posições ainda mais opostas. De um lado, nações com histórico de consumo elevado de bebidas alcóolicas (como a Irlanda), de outro, países produtores (como a Itália).
O ataque: os irlandeses apoiam um ambicioso plano que obriga as embalagens de bebdas alcóolicas (inclusive o vinho) irem a mercado obrigatoriamente com mensagens não muito diferentes daquelas que já se vê em maços de cigarros. O motivo: estudos científicos que mostram que o consumo de álcool aumenta o risco de câncer nos consumidores. Em outras palavras, uma questão de saúde pública.
A defesa: os italianos lideram os esforços para que a proposta irlandesa seja descartada, ou ao menos amenizada. A justificativa: os estudos mostrariam relação entre álcool e câncer apenas em situações de consumo excessivo. Além disso, o teor alcóolico dos vinhos é muito inferior àqueles registrados nos destilados, geralmente os favoritos de quem abusa do consumo de bebidas alcoólicas.
Quem tem razão?
Embora as duas partes envolvidas claramente “puxem a sardinha” para seu lado, há argumentos interessantes nos discursos de ambas as partes. Não existe ainda consenso a respeito do impacto do consumo de álcool sobre a incidência de câncer. Porém, já há elementos suficientes que evidenciam que o consumo excessivo de bebidas alcóolicas não é recomendado. Os estudos, porém, ainda são inconclusivos, sobretudo quando falamos de consumo moderado. E esta última parece ser a palavra mágica para desatar este nó.
Os italianos, inclusive, parecem dispostos a aceitar algum tipo de legislação alertando para o consumo excessivo, mas querem também deixar claro algo um tanto óbvio, de que o vinho não é uísque ou vodca. Realmente é complicado comparar o impacto sobre a saúde de bebidas com teores alcóolicos tão diferentes, dos 13% médios do vinho aos 45% de muitos dos principais destilados.
A expectativa atualmente é que algum tipo de compromisso seja acertado dentro da União Europeia. Possivelmente, o exemplo de contrarrótulo mostrado acima ficará longe das garrafas de vinho, mas a contrapartida será o reconhecimento de que, mesmo fazendo parte das tradições muitos países europeus há milênios, o vinho não deixa de ser uma bebida alcóolica, com riscos inerentes.
Vinho é alimento?
Este debate traz à luz também uma discussão já “tradicional” no Brasil. Não faltam produtores e jornalistas/influenciadores do vinho que tentam vender a imagem de que vinho é alimento. As referências sempre quase se remetem ao século XIX, quando camponeses europeus tinham o vinho como parte central de sua dieta. Embora poética, esta situação refletia mais as condições de miséria vividas por boa parte dos europeus na época do que a preferência pelo vinho.
Se os europeus do sul, sobretudo italianos, portugueses, espanhóis, gregos e mesmo franceses, consumiam uma quantidade enorme de vinho, outros europeus não tinham a mesma sorte. Sem a possibilidade de contar com um produto pouco perecível e de fácil preparo, na Europa do Norte a situação era outra. A fome e outros problemas foram responsáveis por emigrações em massa a partir destas regiões, sobretudo em direção aos Estados Unidos. Estima-se, por exemplo, que cerca de 20% da população masculina da hoje milionária Suécia migrou no século XIX. Confirmando esta tendência, ao menos 200.000 alemães escolheram os Estados Unidos como sua nova casa até 1854. Isso sem falar da maciça emigração irlandesa.
Não faz qualquer sentido, porém, comparar o que ocorreu no passado com o que vemos hoje. O Brasil passa por uma situação econômica delicada e há muita gente com necessidades alimentares por aqui. Mas certamente produzir vinho para sanar este problema não faz qualquer sentido. No fundo, o que muitos produtores querem mesmo é uma menor carga de impostos sobre o vinho (o que não deixa de ser uma solicitação legítima). Porém, chamar o vinho de alimento é certamente forçar demais a barra.
Bom senso e uma taça de vinho
Estas discussões evidenciam que realmente ainda falta bom senso em muitos setores. O que se espera é que tanto autoridades como consumidores tenham senso crítico suficiente para descartar afirmações e propostas radicais e que pouco acrescentam ao bem-estar da sociedade. Sendo o vinho uma bebida alcóolica, o consumo moderado é o limite máximo, não faz sentido fazer apologia de que vale tudo, com a justificativa furada de que é um produto “ancestral”.
Estudos mais detalhados são necessários para verificar se realmente existe relação entre o consumo moderado de vinhos e a incidência de doenças, como câncer ou cirrose, por exemplo. Da mesma forma, novos estudos devem ser feitos também para identificar se realmente existem efeitos positivos decorrentes do consumo moderado, na forma de redução de risco de doenças cardíacas ou do sistema nervoso central. Com tanta coisa em discussão, prefiro manter (e recomendo para quem já tem idade legal de consumo) uma rotina saudável, com atividade física, consumo mínimo de alimentos industriais e, se possível, uma taça de um bom vinho.
Como eu me descrevo? Sou um amante exigente (pode chamar de chato mesmo) de vinhos, um autodidata que segue na eterna busca de vinhos que consigam exprimir, com qualidade, artesanalidade, criatividade e autenticidade, e que fujam dos modismos e das definições vazias. A recompensa é que eles existem, basta procurar!
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Foto: Arquivo pessoal
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