Novidades no vinho da Serra da Mantiqueira. E não é poda invertida!

Quinze anos atrás poucos acreditariam que a região Sudeste do Brasil seria capaz de produzir vinhos num padrão razoável de qualidade. Hoje não mais. Os chamados “vinhos de inverno”, produzidos através da técnica da poda invertida mudaram esse cenário.

Mas a coluna desse mês irá tratar de uma outra face dos vinhos do Sudeste. Vinhos produzidos com a Vitis Vinifera, as chamadas uvas nobres, com baixa intervenção e que não usam a técnica da poda invertida. Nesse caso, a videira segue o seu ciclo anual natural e a colheitas acontece no verão.

Qual a terminologia correta para esses vinhos

O leitor atento observou que no título, e nos dois parágrafos dessa coluna, foram usadas três formas distintas para nomear os vinhos que são produzidos no Sudeste do Brasil, em estados como São Paulo e Minas Gerais: “Vinhos do Sudeste”, “Vinhos da Mantiqueira” e “Vinhos de Inverno”. Há também que se refira a eles como “Vinhos de Poda Invertida”, ou simplesmente “Dupla Poda”

Não existe uma terminologia correta, afinal ainda não foi criada uma Indicação Protegida (IP) normatizando e regulando os vinhos da região, bem como os limites de sua área geográfica. Vale registrar, no entanto, que um grupo de produtores já trabalha na tentativa de buscar uma regulamentação. Como consequência, recentemente foi criada a Aprovin – Associação Nacional dos Produtores dos Vinhos de Inverno. 

Essa terminologia teria a vantagem de também incluir vinhos produzidos por esse método em outras regiões, além do Sudeste do Brasil. Até outubro de 2022, no entanto, essa regulamentação ainda não foi oficializada.

Regiões tradicionais da viticultura

Registros apontam para o surgimento da Vitis Vinifera, a espécie de uva utilizada na produção dos chamados “vinhos finos” nas proximidades do Mar Cáspio, onde hoje estão localizados a Geórgia, o Azerbaijão e Armenia. Afora a curiosidade histórica, a importância desse fato é que o conhecimento de onde a Vitis Vinifera surgiu aponta as condições naturais mais apropriadas para ela produzir uvas com qualidade.

Essa região faz parte da bacia do Mediterrâneo, onde os verões são secos e ensolarados. Os invernos são chuvosos e há uma elevada incidência solar.  Além disso, há baixa ocorrência de intempéries como geadas e chuvas de granizo nos períodos críticos do ciclo da videira. Essas condições são também observadas em outras partes do mundo, nas chamadas zonas isotérmicas da bacia mediterrânea que, de maneira simplificada, costumam se situar entre as latitudes 30° a 50° dos hemisférios nortes e sul.

Expansão da viticultura fora das regiões tradicionais de produção

Definitivamente as regiões produtoras de São Paulo e Minas Gerais estão longe de oferecerem tais condições naturais, o que, a rigor, inviabilizaria a produção de uvas com qualidade para produção de vinhos finos. Mas como já é conhecido, a adoção de uma técnica (que já era largamente utilizada no cultivo de outras frutas, como a uva de mesa), a poda invertida, viabilizou a vitivinicultura de qualidade na região.

Mas será que a poda invertida  combina com o cultivo de baixa intervenção da Vitis Vinifera? Um dos destaques da Feira Naturebas, que aconteceu em meados de 2022, foi um produtor da região de Maria da Fé, em Minas Gerais, expondo vinhos que desafiam dois pilares dos vinhos de maior destaque produzidos na Serra do Sudeste, a saber:

Não é adotada a poda invertida, ou seja, a videira segue o ciclo anual definido pela natureza, com as uvas sendo colhidas majoritariamente em janeiro;Baixa intervenção, no manejo da videira e na vinificação.

Vale destacar que interromper o ciclo natural da videira, como ocorre com a utilização da poda invertida, exige uma série de intervenções e cuidados especiais. A brotação, floração e frutificação passam a ocorrer em períodos diferentes do que foi definido pela natureza. Isso acarreta uma série de consequência, como o aumento do risco de a videira ser afetada por pragas, especialmente as que provocam as temidas doenças fúngicas, como o míldio, pois coincide com o período de chuvas intensa. E nesses momentos críticos é inevitável o uso de produtos químicos para manter a sanidade da planta.

Além disso, interromper o ciclo da videira vai contra os princípios básicos de uma cultura orgânica. E “acordar” e “despertar” a videira exigem tratamentos artificiais, que não aconteceriam sem a influência humana.

Vinícola Lorenzo, Maria da Fé MG

Ao decidir nadar contra a corrente, sem utilizar a poda invertida e restringindo o uso de produtos químicos no manejo de suas videiras, indiscutivelmente o casal Elisama e Leonardo Lorenzo fogem ao lugar comum observado no novo cenário do vinho do Sudeste, que tem a Vinícola Gaspari, de Espírito Santo do Pinhal, como grande protagonista.

Os desafios a serem superados são imensos. E a aposta passa por cultivar videiras em altitudes elevadas. O vinhedo está localizado a aproximadamente 1.600 metros de altitude, em terrenos íngremes e solos que favorecem a drenagem. A altitude, nesse caso, é fundamental para garantir a amplitude térmica. Por outro lado, altitude também aumenta o risco das intempéries naturais, como geadas e chuvas de granizo.   

Segundo os produtores, no início do cultivo em 2019, a falta de experiência os levou a práticas tradicionais, com abuso de fertilizantes e defensivos. Porém a observação atenta, aliada as crenças pessoais, indicaram que “quanto mais química, menos saudável ficavam as plantas”.

Decidiram então mudar a abordagem buscando inspiração nas técnicas do cultivo orgânico. Ainda estão no início da jornada, mas o objetivo é tornar, na medida do possível, integrar o vinhedo sem recorrer a produtos químicos que garantam sua sobrevivência no local. O caminho para isso é utilizar, sempre que possível, o elemento orgânico para combater as pragas da videira.

Os vinhos da Lorenzo

A vinícola possui aproximadamente 5 hectares plantados. O cultivo foi iniciado em 2019 com mais de 10 variedades sendo testadas.

A vinificação se dá respeitando princípios da baixa intervenção (restrição do uso do SO2, leveduras naturais e outras práticas que se enquadram no conceito de baixa intervenção). Os vinhos passam muito pouco tempo em tanques (cerca de 10 dias) e não há, pelo menos por ora, passagem por madeira. Na safra 2022, já disponível e servida na Feira Natureba, foram produzidas cerca de 1.200 garrafas, sendo que em 2023 a expectativa é envazar 5.000 garrafas.

Figura 2 – Vinho 1- blend de Chardonnay e Viogner, Vinho 2- blend de Merlot e CS e Vinho 3 Varietal Pinot Noir

Portanto, ainda se trata de uma produção pequena e com videiras muito jovens, ainda fora da faixa ideal para produção de vinhos de padrão razoável. Normalmente somente a partir da quarta safra as uvas mostram potencial para produzir vinhos de maior qualidade.

Provamos quatro vinhos na vinícola. Um branco, blend de Chardonnay e Viogner, dois tintos (um blend de Merlot e Cabernet Sauvignon e um varietal de Pinot Noir) e, finalmente, um espumante 100% PN. Enquanto os vinhedos de PN foram plantados em 2019, os demais foram em 2020.

Na taça, tanto o branco quanto o blend de CS e Merlot foram capazes de mostrar uma boa fruta, mas sem intensidade de sabor. O que seria de se esperar de uvas oriundas de vinhedos tão jovens. Mas o que chamou a atenção foi o Pinot Noir.  Com 12,5% de álcool, foi capaz de mostrar uma acidez razoável e boa fruta, além de notas terrosas. Uma boa tipicidade, apesar da falta de estrutura (taninos baixíssimos). Levando em conta que ainda é um vinho num estágio similar a um protótipo, chama a atenção o potencial mostrado na safra 2022.

Um outro estilo de vinho no Sudeste, ou na Serra da Mantiqueira?

É muito cedo para dizer e cravar conclusões firmes. Mas é um muito interessante assistir  o surgimento um novo caminho da vitivinicultura na região. O que chama a atenção, especialmente no promissor vinho produzido com a Pinot Noir da Lorenzo, é a possibilidade de produzir um vinho diferente do mainstream da maioria dos vinhos produzidos em São Paulo a Minas Gerais.

Ao invés da fruta madura e/ou sobre madura, o que se viu foi um vinho com uma fruta mais fresca e limpa. Ao invés das bombas alcoólicas que chegam em alguns vinhos a 16% de álcool, um vinho de 12,5% de álcool. E ao invés do excesso de madeira (ou chip de madeira) e leveduras industriais que transmitem um caráter artificial aos vinhos, uma vinificação com leveduras naturais e que valorizam as particularidades do local de onde a uva foi cultivada.

Mas assim como a poda invertida, o tipo de cultivo proposto pela Lorenzo é trabalhoso, no sentido de exigir uma atenção enorme e bastante custoso. Nesse sentido é difícil vislumbrar a produção em grande escala e com baixo custo. Mas certamente há uma enorme demanda por vinhos autênticos no Brasil e vale a pena acompanhar de perto o que está acontecendo em Maria da Fé.

Renato Nahas é Professor da ABS-Campinas. Concluiu a certificação de Bourgogne Master Level da WSG, é Formador homologado pelo Consejo Regulador de Jerez e Italian Wine Specialist – IWS, pela WSG. Sommelier formado pela ABS-SP, possui também as seguintes certificações: WSET3, FWE e CWS, este último pela Society Wine Educators.

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Foto da capa: Renato Nahas, arquivo pessoal

Imagens: arquivo pessoal do autor

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