Os dois mundos do vinho

Vinhos de uvas autóctones ou variedades internacionais? Feitos com uvas de agricultura convencional ou orgânica? Elaboração com uso de técnicas mais modernas ou tradicionais? Estas são apenas três das milhares de perguntas que podem ser feitas para tentar segmentar os vinhos de acordo com a forma no qual são elaborados.  E, hoje em dia, são questões muitos relevantes, até porque estas escolhas afetam de forma significativa o que o vinho irá mostrar na taça.

Por conta disso, há um acalorado debate sobre o impacto destes fatores e como isso corresponde às preferências de cada apreciador de vinhos. São inúmeras “panelinhas” criadas com base nesta discussão. De um lado, quem gosta de “vinhos naturais” e, de outro, quem não tem problema com intervenção mais pesada. Com ou sem passagem por madeira? Mais ou menos extração? Novamente, um número quase infinito de variáveis.

Um passo atrás

Porém, esta discussão pode ser muito mais produtiva se dermos um passo para trás. O que era o vinho há 80 anos? Antes da popularização dos produtos químicos sintéticos, antes da criação de grandes grupos de vinícolas, antes da internacionalização de algumas variedades de uva. O que se via, em geral, era uma produção menor, com uma ligação muito mais forte com as tradições de cada região. Em poucas palavras, vinhos que podiam ser descritos, em sua maioria, como artesanais ou “pré-industrias”, usando o termo cunhado por Paul Draper.

Foi somente a partir da década de 1950 que a produção do vinho ganhou um caráter mais industrial. Fertilizantes, pesticidas e herbicidas sintéticos se tornaram populares, a mecanização nos vinhedos passou a ser quase que regra e inúmeras técnicas foram incorporadas na vinificação. O objetivo: aumentar a produção, seja pelo aumento na produtividade como pela expansão da área plantada e redução das perdas. Em um mundo marcado por rápido crescimento da população, a produção de uvas para elaboração de vinhos teria que crescer, em linha com o que se viu na produção de todo tipo de alimento. E, se possível, a um preço mais baixo.

A maioria dos vinhos atuais

Esta trajetória de crescimento está refletida no que é o mundo do vinho hoje. A grande maioria dos vinhos ofertados no mundo se tornou um produto industrial. Os dois objetivos principais são quantidade e preço, com a qualidade em um patamar abaixo. O que mais conta no vinhedo é a produtividade e a redução de perdas, seja pelo uso de mecanização ou produtos químicos. Na adega, o foco é um produto padronizado, onde diversas técnicas são usadas para esconder as variações de safras e/ou agradar às preferências do consumidor.

Como o vinho compete com outras bebidas, existe a questão do preço. Não basta oferecer somente quantidade, o preço tem que ser acessível ao consumidor. E não nada errado com isso, dentro de uma sociedade moderna industrial, o vinho se tornou mais um produto. Da mesma forma que você pode comprar uma pizza congelada ou pacote de cervejas, o vinho estará na gôndola do supermercado, com opções que atendam diversos gostos ou orçamentos.

O vinho ‘não industrial”

De outro lado, ainda existe o vinho artesanal, ou “não industrial”. Mais do que isso, podemos dizer que ele vem crescendo nas últimas décadas, é só analisar o crescimento do segmento de vinhos de baixa intervenção. Porém, está claro que ele acabou se tornando um nicho de mercado. Se, de um lado, os vinhos industriais têm foco principal em quantidade e preço, este segmento busca a qualidade em primeiro lugar, abrindo muitas vezes mão da quantidade. O preço? Acaba sendo consequência.

Quando se fala em vinho artesanal, porém, é importante colocá-lo dentro do contexto de uma sociedade moderna. Sim, existe o uso de técnicas e insumos industriais em muitos casos, mas, em geral, muda o foco, voltado mais para a qualidade do que para os demais. O resultado? Em geral, são vinhos de maior qualidade, que, porém, acabam se tornando caros demais para grande parte dos consumidores.

Coexistência pacífica

A existência destes dois “polos” (e o que fica entre eles) não deve ser vista com um problema. Ao contrário, é uma solução, permitindo que o vinho seja apreciado por um número maior de pessoas. Quando se fala de vinhos industriais, isso não implica falar em vinho ruim. Se não mostram os padrões e foco na qualidade de outros vinhos de menor escala, em geral, entregam um perfil de qualidade atrativo em relação a seu preço. Sabendo escolher, você pode ir a um supermercado e comprar um vinho de boa relação custo-benefício sem ter que gastar mais de R$ 100.

De outro lado, para quem já desenvolveu um paladar mais refinado e não tem problemas em pagar mais caro, as opções não param de crescer. Existem vinhos de alta qualidade nas mais diversas faixas de preço, não é preciso gastar mais que R$ 400 em uma garrafa para beber bem. Tudo é uma questão de percepção e de saber buscar as alternativas que correspondam às suas preferências.

Como eu me descrevo? Sou um amante exigente (pode chamar de chato mesmo) de vinhos, um autodidata que segue na eterna busca de vinhos que consigam exprimir, com qualidade, artesanalidade, criatividade e autenticidade, e que fujam dos modismos e das definições vazias. A recompensa é que eles existem, basta procurar!

Disclaimer: Os conteúdos publicados nesta coluna são da inteira responsabilidade do seu autor. O WineFun não se responsabiliza por esses conteúdos nem por ações que resultem dos mesmos ou comentários emitidos pelos leitores.

Foto: Alessandro Tommasi, arquivo pessoal

O post Os dois mundos do vinho apareceu primeiro em Wine Fun.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *