Poda invertida ou dupla poda. Se você acompanha de perto ou consome com frequência vinhos brasileiros, já deve ter ouvido ao menos uma destas duas expressões. Nos últimos anos se tornaram mais populares os vinhos finos elaborados em regiões menos tradicionais, como Minas Gerais e Goiás. Isso ampliou o leque de regiões produtoras, anteriormente restrito ao Rio Grande do Sul e algumas áreas isoladas de Santa Catarina e São Paulo.
E grande parte destes vinhos de regiões anteriormente consideradas inviáveis para a vinicultura de qualidade é produzida usando o sistema de dupla poda ou poda invertida, daqui para frente considerados como sinônimos. Mas para entender melhor como funciona, suas vantagens e desvantagens, vale a pena dar um passo atrás e conhecer o ciclo anual de uma videira.
O ciclo da videira
Boa parte da produção de vinho do mundo fica entre as latitudes 30 e 50, seja no Hemisfério Norte como no Sul. Embora nestas duas partes do planeta as estações sejam inversas (quando é inverno no Hemisfério Sul é verão no Norte e vice-versa), as parreiras seguem um ciclo vegetativo de um ano que, obviamente se ajusta à sua localização.
No verão as videiras atingem o seu ponto mais alto de maturação, sendo estes os meses quando ocorrem a poda verde e a colheita. No caso das parreiras localizadas no Hemisfério Sul, isso acontece em janeiro/fevereiro/março, já no Norte, isso acontece em julho/agosto/setembro. A parte seguinte do ciclo, que corresponde ao outono, vê o final da colheita, a mudança de cor das folhas e o início da dormência das videiras. Vale lembrar que as videiras são plantas que mostram ótima tolerância às condições que virão na estação seguinte.
É no inverno que as folhas caem e que as videiras entram em dormência, guardando energia e se protegendo das intempéries climáticas. É quando se faz a poda seca, um ponto de vital importância para a qualidade das uvas nas partes posteriores do ciclo. Com o final do inverno e início da primavera, as videiras “renascem”, inicialmente com a brotação, as primeiras folhas e a floração. Seguem a frutificação, a veraison (chamada por alguns de pintor, quando as uvas mudam de cor), tudo como parte da maturação, que segue nos meses de verão e culminam em uma nova colheita, já no ciclo seguinte.
Alteração no ciclo
A dupla poda ou poda invertida busca alterar este ciclo, permitindo que a colheita ocorra no inverno, não no verão. Esta estratégia pode ser adotada em regiões que apresentam, no inverno, condições favoráveis para a maturação das uvas. Se na Europa e regiões meridionais da América do Sul o inverno é mais intenso, com pouco sol e chuva ou neve, isso não ocorre em outras regiões. Exemplos são os planaltos de Minas Gerais e Goiás, regiões citadas anteriormente exatamente pelos seus vinhos de poda invertida.
E quais são estas condições? São regiões de altitude, geralmente entre 800 e 1000 metros acima do nível do mar, com amplitude térmica significativa. Esta é uma condição importante para o desenvolvimento de uvas de qualidade. Não é incomum ver as temperaturas atingirem máximas acima de 32 graus durante o dia em agosto nestas áreas, com noites onde o termômetro marca 12 graus. Além disso, há alta exposição solar e poucas chuvas no inverno. Isso favorece a concentração das uvas e reduz a incidência de doenças fúngicas nos vinhedos.
A poda invertida no Brasil
Para colocar a poda invertida em prática, o viticultor deve realizar duas podas. A primeira, chamada de poda de formação, ocorre nos meses de inverno, geralmente em setembro. Uma segunda poda deve ser feita no verão, o que explica a origem do termo dupla poda. Embora não seja uma invenção brasileira, a dupla poda ganhou maior projeção no Brasil, por conta de algumas peculiaridades do nosso país.
Um personagem importante da introdução da dupla poda no Brasil é o professor Murilo Albuquerque Regina. Este engenheiro agrônomo, originário de Varginha (MG), passou bastante tempo na França, com destaque para seus estudos de fruticultura nas universidades de Montpellier e Bordeaux. De volta ao Brasil, trouxe as ideias e, com ajuda de outros que viram esta estratégia como uma solução interessante, o Brasil viu suas primeiras experiências em maior escala com dupla poda já no início da década de 2000.
Testes realizados nos últimos anos com videiras em algumas regiões mostraram as vantagens da poda invertida. Em uma comparação realizada em vinhedos em Cordislândia (MG), a uvas resultantes da poda invertida apresentaram teores maiores de sólidos solúveis, açúcares, antocianinas e outros compostos fenólicos do que aquelas de cultivo tradicional na mesma área. Isso mostrou que os chamados “vinhos de inverno” têm potencial maior do que os tradicionais “vinhos de verão” produzidos nesta área.
Uma questão importante
O uso desta estratégia, porém, não é um consenso. Ao contrário do “ciclo normal”, no caso do uso da poda invertida as videiras não entram em dormência em nenhuma etapa de seu ciclo. Estudos estão sendo desenvolvidos para avaliar o impacto que isso possa ter sobre as plantas, tanto na produtividade, saúde como vida útil.
Sem entrarem em dormência, as videiras necessitam de um incentivo externo para produzirem gemas (de onde virão os ramos, cachos e uvas). Para que isso ocorra, logo após a poda de verão (geralmente após o Carnaval no Brasil) é necessária a aplicação de um regulador de crescimento nas videiras, chamado Dormex. Contendo a substância cianamida hidrogenada, ele estimula a produção de gemas e serve também para uniformizar sua brotação. É uma etapa obrigatória da estratégia de dupla poda, sem ela, a uva tende a seguir seu fluxo natural.
O que não é destacado de forma clara no Brasil é que este produto é proibido em diversos países do mundo, por ser considerado extremamente tóxico. Após uma enorme controvérsia na Europa, sobretudo na Itália (onde foi suspenso em 2002), a União Europeia proibiu o uso do Dormex em 2008. A justificativa? Estudos evidenciaram indícios claros de que a cianamida hidrogenada tem efeitos nocivos sobre a saúde humana e, em particular, sobre quem trabalha nos vinhedos, mesmo quando usam equipamentos de proteção.
Outras limitações
Mesmo sem entrar na questão do Dormex ou do stress que a falta de dormência causa nas videiras, existem outras limitações importantes ao uso da poda dupla. Ela não é recomendada para diversas variedades de uvas, que mostram menor fertilidade ou produtividade, como a Merlot, por exemplo. Isso explica por que muitos dos “vinhos de inverno” elaborados a partir de videiras com dupla poda são da varedade Syrah, de alta fertilidade.
O uso da dupla poda implica também em uma redução do rendimento das videiras. Isso pode ser uma questão importante para viticultores que tem como objetivo principal a quantidade de uvas produzidas. Independente destes fatores, porém, algo é certo: esta estratégia revolucionou a viticultura em algumas regiões brasileiras, embora sua sustentabilidade de longo prazo dependa de avanços para contornar suas limitações atuais.
Fontes: Poda dupla, poda invertida: Uma nova viticultura? Seminário organizado pela ABS-RS com a Prof Caroline Dani; Banned in Europe: How the EU exports pesticides too dangerous for use in Europe, Public Eye
Imagem: Willi Stengel via Pixabay
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