Polêmica: entendendo o presente e o futuro dos vinhos brasileiros de baixa intervenção

Durante uma das apresentações do Guia Descorchados na semana passada, uma declaração causou um verdadeiro alvoroço em alguns setores do vinho brasileiro. Quando indagado sobre a baixa presença de representantes brasileiros em um painel focado em vinhos naturais e/ou de baixa intervenção, Patricio Tapia, criador e principal editor do guia foi direto e reto. Deixou claro que é muito difícil encontrar vinhos brasileiros de qualidade neste segmento, pois ainda existe uma grande quantidade de vinhos com defeitos.

Não vou entrar no mérito da discussão sobre este verdadeiro “sincericídio” do editor do maior guia de vinhos da América do Sul. Generalizações são sempre difíceis, seja quando apontam questões delicadas (como neste caso), quando vem na forma de elogios. Além disso, a própria percepção do que é “defeito” varia entre degustadores. Porém, nesta coluna gostaria de focar em um ponto que talvez ajude a explicar parte do racional que levou a esta polêmica.

Qualidade dos vinhedos

A própria definição do que é vinho natural ou de baixa intervenção é nebulosa. Porém, existe um princípio adotado de forma quase universal. É complicado fazer um vinho que permita ao vinhateiro fazer uso limitado de técnicas e aditivos sem que as uvas sejam de altíssima qualidade. Por isso, em grande parte do mundo, é praticamente uma pré-condição que as uvas usadas para a elaboração de vinhos não industriais sejam provenientes de vinhedos de cultivo orgânico ou biodinâmico.

Não parece haver dúvida que estes modos de agricultura resultam em uvas mais saudáveis e, mantidas as demais condições, em vinhos de maior qualidade. Além disso, a imensa maioria dos produtores de baixa intervenção elabora seus vinhos a partir de vinhedos próprios ou de parcelas onde têm controle quase integral do cultivo.

Uvas mais saudáveis e colhidas no momento ideal permitem ao vinhateiro um grau muito maior de flexibilidade no uso de técnicas de vinificação. Ter o conhecimento completo de cada parcela do vinhedo e controle total do processo de cultivo e colheita acaba, na palavra de muitos vinhateiros e enólogos, facilitando muito o trabalho na adega.

Situação no Brasil

Ao contrário do que ocorre em boa parte do mundo, o cultivo orgânico e biodinâmico no Brasil ainda é incipiente. Em geral, o uso de herbicidas, pesticidas e fungicidas segue elevado, sobretudo quando falamos de vinícolas industriais, com grandes áreas de vinhedos. A principal justificativa é o clima mais úmido em muitas de nossas principais áreas de vinhedos, como a Serra Gaúcha.

Por conta da umidade mais intensa, existe uma propensão maior de desenvolvimento de doenças fúngicas, como míldio e oídio nas videiras. E a solução para isso é recorrer aos famosos sprays, geralmente contendo fungicidas, o que não é permitido nas regras de cultivo orgânico e biodinâmico. Isso ajuda a explicar por que estas formas de agricultura ainda engatinham na viticultura brasileira.

Mas será este o único impeditivo? Há múltiplos relatos de produtores migrando para estas formas de agricultura em diversas regiões de alta umidade ao redor do mundo. Por exemplo, toda a parte noroeste da Península Ibérica sofre com forte influência do Oceano Atlântico, mas cada dia são mais comuns produtores orgânicos e biodinâmicos na região. Também as condições de umidade em muitas partes da Borgonha e do Piemonte são longes do ideal, mas a agricultura orgânica rapidamente cresceu nestas áreas.

Foco na viticultura

A viticultura é, na minha visão, o calcanhar de Aquiles do vinho brasileiro de baixa intervenção. Embora existam avanços recentes, com viticultores diligentes e dedicados partindo para adoção de práticas mais sustentáveis nos vinhedos, ainda há muito o que fazer. Outro passo fundamental é o maior controle dos vinhedos por parte dos vinhateiros, garantindo um acompanhamento mais próximo das videiras e seus frutos.

Estudar a história da vinicultura no século XX na Europa pode servir de guia para o que fazer no Brasil. Após a explosão do uso de produtos químicos nos vinhedos a partir da década de 1950, o que se viu foi uma queda na qualidade das uvas. Para tentar manter a qualidade dos vinhos, a solução foi intervir mais na vinificação, o que, quando aplicado em grande escala, resultou em vinhos industriais, muitos deles sem personalidade ou vibração.

Todo o movimento de vinhos naturais e/ou de baixa intervenção surgiu como reação a estes vinhos sem brilho. E, no caso, o esforço foi concentrado tanto nas adegas como, sobretudo, nos vinhedos. A explosão do uso de práticas orgânicas e biodinâmicas nas últimas décadas foi consequência deste movimento. Se anteriormente era restrito a produtores artesanais, hoje virou prática corrente para muitos produtores de maior porte.

Uma coisa de cada vez

Concluindo, é difícil pensar em vinhos naturais e/ou baixa intervenção de alta qualidade sem que tenhamos vinhedos mais sustentáveis e uvas melhores. Os esforços de muitos pioneiros são admiráveis, mas é difícil construir uma casa começando pelo segundo andar. Não há dúvida que temos alguns vinhos de ótima qualidade neste segmento no Brasil, mas o inverso também é verdadeiro. Infelizmente, ainda há vinhos de qualidade abaixo do tolerável por aqui.

Independentemente de opiniões controvertidas ou polêmicas, o caminho parece claro. Apesar das condições climáticas mais difíceis, é imperativo melhorar a qualidade de nossas uvas. Quando isso ocorrer, vinhos naturais e/ou de baixa intervenção de alta gama serão a regra, não a exceção. Talento, determinação e criatividade não faltam no nosso país.    

Como eu me descrevo? Sou um amante exigente (pode chamar de chato mesmo) de vinhos, um autodidata que segue na eterna busca de vinhos que consigam exprimir, com qualidade, artesanalidade, criatividade e autenticidade, e que fujam dos modismos e das definições vazias. A recompensa é que eles existem, basta procurar!

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Foto: Alessandro Tommasi, arquivo pessoal

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