Qual o limite do “enrolation” na hora de divulgar ou vender um vinho?

O mercado de importação de vinhos no Brasil está cada dia mais competitivo. Houve um rápido crescimento no número de importadoras, com maior disponibilidade de produtores e vinhos para o consumidor brasileiro. E uma das estratégias usadas por muitas importadoras é apostar na divulgação de conteúdos, buscando educar o consumidor e/ou ressaltar o diferencial de seus produtos.

Porém, a linha que separa o conteúdo confiável da publicidade enganosa é tênue. Embora o termo “enrolation” não exista em inglês, é uma forma divertida de fazer referência a certas práticas. E para explorar este tema, vamos usar um exemplo, que coletei de uma campanha de e-mail marketing recebida de uma importadora em meados de fevereiro.   

Após uma breve chamada comercial, o e-mail abre com a frase “Os vinhos que levam o nome Montrachet no rótulo são considerados os melhores vinhos brancos do mundo”. A seguir vem um texto descrevendo os vinhedos Grand Cru e Premier Cru da área. Em um certo ponto, finalmente aparece o vinho ofertado. “O destaque de hoje é o Domaine Bader-Mimeur Jardins du Château de Chassagne Chassagne Montrachet Blanc 2019”.

Um vinhedo especial

Quem conhece os vinhos e/ou a região da Borgonha entende o quando o vinhedo Montrachet é mítico. Não há como negar que realmente alguns de seus vinhos ficam entre os melhores brancos do mundo. Este vinhedo é tão cultuado que o termo Montrachet foi incorporado ao nome dos dois vilarejos onde ele se situa. A partir de 1878, o vilarejo de Puligny passou a se chamar Puligny-Montrachet, enquanto seu vizinho ao sul, Chassagne, incorporou o nome do vinhedo no ano seguinte.

A classificação de vinhos franceses, aprovada em meados dos anos 1930, somente reforçou esta percepção. Montrachet e outros quatro climats (um conceito local próximo a vinhedo) que usam este nome (Chevalier-Montrachet, Bâtard-Montrachet, Criots-Bâtard-Montrachet e Bienvenues-Bâtard-Montrachet) ficam entre os únicos da Côte de Beaune (juntamente com três da colina de Corton) a receber a classificação Grand Cru. Resumo: Montrachet é um nome de peso.

Vinhedo é uma coisa, village é outra

Montrachet, porém, é somente o topo da pirâmide. A mesma classificação dos anos 1930 dividiu os vinhedos da Borgonha em quatro categorias hierárquicas. No topo, vêm os Grand Cru, como os mencionados acima, seguido pelos Premier Cru, pelos Village e pelas apelações regionais. No caso dos Village, os produtores têm, desde que cumpram um conjunto específico de regras, o direito de lançar seus vinhos com o nome do vilarejo de origem das uvas no rótulo.

Assim, por exemplo, uma vinícola sediada em Beaune (ou qualquer outro vilarejo da região) pode comercializar um Meursault (desde que as uvas sejam provenientes de um vinhedo Village neste vilarejo). Ou um Chassagne-Montrachet, caso as uvas sejam originárias deste vilarejo. O ponto chave é saber de onde vêm as uvas.

Usando o nome do vinhedo

Dentro desta escala hierárquica, os vinhos com uvas provenientes de vinhedos Grand Cru usam o nome do vinhedo e o termo Grand Cru, geralmente sem menção ao vilarejo. Já os Premier Cru mencionam o vilarejo, o termo Premier Cru e o nome do vinhedo, como, por exemplo, Puligny-Montrachet Premier Cru La Garenne. Já no caso dos Village, boa parte das vezes eles não usam o nome do vinhedo, somente do vilarejo, embora isso venha mudando.

Fica fácil agora entender o uso do termo Montrachet. São quatro climats Grand Cru (os únicos que usam somente o nome do vinhedo) e 36 Premier Cru (17 em Puligny-Montrachet e 19 em Chassagne-Montrachet), no caso, como referência ao nome do vilarejo. A isso se somam os inúmeros Village produzidos com uvas provenientes de cada um dos dois vilarejos que incorporaram Montrachet ao seu nome no passado.

Entendendo o que a importadora quer vender

O conteúdo dos seis parágrafos anteriores desta coluna pode nos ajudar a decifrar melhor a comunicação da importadora. Aquela primeira frase que se refere ao nome Montrachet tem uma parte verdadeira, porém somente se a referência for aos Grand Cru. Além disso, o uso da expressão “melhores vinhos do mundo” seja puxar um pouco a corda, pois a definição de “melhor” está longe de ser objetiva.

Mas a linha de raciocínio usada a seguir, sobretudo para quem não tem (ou tinha) o conhecimento de como funciona a classificação dos vinhos da Borgonha, é altamente contestável. No caso, o vinho ofertado é um Village, ou seja, fica no terceiro degrau da escala de classificação. Ele tem o nome Montrachet no rótulo por um simples motivo. As uvas usadas são provenientes do vilarejo de Chassagne-Montrachet, mas não do espetacular vinhedo Grand Cru.

Conteúdo ou propaganda enganosa?

Talvez eu tenha compreendido a linha de raciocínio de forma incorreta, mas certamente não descreveria o vinho em questão da mesma forma que a importadora. O vinhedo Grand Cru Montrachet é uma coisa, os vinhos Village de Chassagne-Montrachet são outra coisa, completamente distinta. Certamente existem excelentes vinhos Village em Chassagne-Montrachet, mas o fato de ter o nome Montrachet no rótulo nada garante, a não ser sua origem.

Nunca provei este vinho e nem conheço o produtor. Aliás, vale destacar que ele sequer é citado nas 798 páginas do principal guia de referência dos vinhos da Borgonha, o clássico Insider Burgundy, escrito pelo Master of Wine Jasper Morris. Portanto, não posso comentar a respeito da qualidade do vinho oferecido. Mas posso comentar sobre a “estratégia” usada para tentar vender este vinho. Deixo a você, leitor, o julgamento sobre este assunto, respondendo à pergunta “Conteúdo ou propaganda enganosa”?

Como eu me descrevo? Sou um amante exigente (pode chamar de chato mesmo) de vinhos, um autodidata que segue na eterna busca de vinhos que consigam exprimir, com qualidade, artesanalidade, criatividade e autenticidade, e que fujam dos modismos e das definições vazias. A recompensa é que eles existem, basta procurar!

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Foto: Arquivo pessoal

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